“Adolescência”, a nova série da Netflix, explodiu globalmente em poucos dias por um motivo claro: seu núcleo é um crime brutal supostamente cometido por um menino de apenas 13 anos, que teria assassinado uma colega de escola. Mas o que mais choca na narrativa não é o ato em si, e sim como a série escava as camadas por trás dessa violência juvenil, expondo o papel catalisador das redes sociais na deformação de mentes ainda em formação. Estamos diante de um retrato cru de como a internet pode distorcer a percepção da realidade em jovens vulneráveis, alimentando ideologias como as do movimento red pill e da masculinidade tóxica, mais ou menos sinônima de machismo.
A série traça um paralelo perturbador com o conceito da pílula vermelha do filme Matrix – aquela que supostamente oferece a dura verdade sobre a sociedade, em contraste com a pílula azul da ignorância voluntária. Na narrativa digital atual, a red pill foi sequestrada por grupos que pregam uma visão distorcida de masculinidade, apresentando-a como antídoto contra o que chamam de “doutrinação progressista”. Essa suposta revelação é vendida como empoderamento, mas na prática funciona como veneno para adolescentes impressionáveis. Lembrem a epidemia de suicídios que se seguiu à Baleia Azul (2017), uma espécie de copycat dos suicídios que ocorreram após Goethe publicar seu Os sofrimentos do jovem Werther (1774).
O caráter ficcional da série espelha tragédias reais onde jovens radicalizados online cometem atrocidades. A trama mostra como essa propaganda tóxica se infiltra na psique adolescente por meio de fóruns e algoritmos que exploram inseguranças. Não por acaso, conceitos como “incel” (celibatário involuntário) e masculinidade tóxica aparecem como peças desse quebra-cabeça perverso. Repete-se, na série, que 80% das moças seriam atraídas por apenas 20% dos rapazes, numa irônica e quase macabra retomada da célebre equação 80/20 de Vilfredo Pareto, deixando assim 80% dos moços privados de uma vida sexual [1].
A série expõe como esses jovens passam a ver o feminismo, a diversidade e o próprio mundo feminino como ameaças existenciais, abraçando uma visão paranoica de mundo em que a violência se torna resposta legítima.
O grande mérito da produção está em mostrar que o verdadeiro crime vai além do assassinato em si. Destrói-se a vida da vítima, do jovem assassino (muitas vezes mais vítima do sistema que algoz) e de todas as famílias envolvidas. A série alerta para como nossa sociedade está produzindo uma geração de jovens perdidos no labirinto digital, no qual teorias conspiratórias e discursos de ódio se apresentam como refúgio para a solidão e a inadequação. Num mundo onde garotos podem se tornar assassinos antes mesmo da primeira barba, Adolescência questiona: até que ponto nossas plataformas digitais e nossa incapacidade de ouvir os jovens são cúmplices dessas tragédias?
O bullying é uma realidade crescente nas escolas. Ora, além do bullying tradicional, em que os “feios” (como se considera o garoto) eram desprezados, surge hoje um multiplicador, quando o menino passa as noites enfiado na Internet – sem que os pais percebam de que se trata. Os adultos se mostram impotentes, porque ignorantes, não sabendo lidar com esse assustador mundo novo. E isso vale tanto para o pai do menino preso quanto para seu pendant policial, que também ignora o mundo de seu filho. Um esqueceu que a paixão do filho é o desenho, o outro não sabe que o seu rebento estuda francês. O desenho poderia ter salvado Jamie. Talvez ainda o redima.
Por sinal, se Jamie não gosta dos esportes tradicionais da masculinidade, em compensação sua família não soube ou não quis fortalecer sua vocação, que seria a arte. E assim é que um menino sensível, por não se encaixar no modelo viril tradicional, é levado de algum modo à extrema violência.
Além da questão da Internet, temos aqui a relação entre pais e filhos, ou entre pai e filho – já que as mulheres, como a mãe de Jamie, a irmã deste e a psicóloga parecem aceitar melhor a personalidade dele. Isso, embora a psicóloga lhe negue o amor pedido, enquanto mãe e filha não respondem a ele, quando faz seu terrível desabafo, já no último dos quatro episódios da série.
No fundo, o que o menino quer é ser amado. É o que ele pedia à menina, que o desdenhava. É o que pede, desesperado, à psicóloga. E o arremate dessa frustração se dá quando diz aos pais que vai confessar o crime, e nem o pai, nem a mãe, nem a irmã conseguem lhe dizer nada, além de banalidades, como perguntar o que está comendo.
Uma série de constantes gritos sem resposta, de pedidos que ficam calados, de desespero insatisfeito. É importante apurarmos nossa escuta. O futuro será mais sombrio, se não soubermos apreender os sinais do perigo, nem responder a quem clama, ainda que com palavras trôpegas, por socorro.
Renato Janine Ribeiro – Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)
Veja as notas do Especial da Semana – Adolescência e internet
JC Notícias – Proibição de celulares nas escolas deixa sistema educacional mais consciente, defende deputada Marina Helou
JC Notícias – Adolescência e relações intergeracionais
Le Monde – Machismo: “Adolescência” reflete a realidade, com tudo de ruim que ela traz”
Galileu, 17/03/2025 – Uso de smartphones e redes sociais está causando epidemia de ansiedade entre jovens
Porvir, 13/11/2024 – ‘A geração ansiosa’: livro culpa smartphones e redes sociais pela crise de saúde mental. Seriam as únicas razões?
Carta Capital, 09/12/2024 – ‘A geração ansiosa’ e a nova caverna de Platão
O Globo, 23/03/2025 – Para não perder nossos meninos
BBC Brasil, 03/09/2024 – Como redes sociais direcionam imagens de violência para meninos: ‘fica marcado na mente’
O Globo, 24/10/2024 – “A rede social é uma praça pública escura e cheia de estranhos”, afirma juíza da maior Vara de Infância do País
Folha de S. Paulo, 08/12/2024 – Crianças sofrem crimes online dentro do quarto, e pais não fazem ideia, diz juíza
Congresso em Foco, 08/03/2025 – Os crimes cibernéticos contra crianças e adolescentes na internet
Agência Brasil, 11/02/2025 – Uso de internet por crianças entre 6 e 8 anos dobrou na última década
Tilt/UOL, 11/02/2025 – Acesso de crianças de 0 a 2 anos à internet cresce quase 400% desde 2015
Lunetas, 06/12/2024 – Crianças estão mais expostas a ofensas na internet
Estadão, 27/02/2025 – Por que, de todas as telas, o celular é a pior para as crianças?
Unico, 28/01/2025 – Dia Internacional da Proteção de Dados: 1/3 das crianças e adolescentes que estão nas redes sociais têm perfil totalmente aberto
Crescer, 29/01/2025 – Seu filho tem o perfil público nas redes sociais? Entenda os riscos da exposição online de crianças e adolescentes
Unico, 04/12/2024 – Mais da metade das crianças e adolescentes que jogam online interagem com desconhecidos, mostra nova pesquisa da Unico
Convergência Digital, 25/03/2025 – Além de banir celulares, escolas têm que incluir algoritmos e inteligência artificial no currículo
BBC Brasil, 27/01/2025 – ‘Não adianta escola proibir celular e os pais continuarem deixando usar 5 horas seguidas em casa’
G1, 14/02/2025 – Dependência de celulares pelas crianças é semelhante ao vício em drogas, alerta especialista
Agência Brasil – Guia sobre uso de telas traz recomendações a pais e professores
Portal do Envelhecimento e Longeviver, 01/04/2025 – Cuidar dos idosos e dos adolescentes
Folha de S. Paulo, 13/03/2025 – Muito além de um grupo de cyberbullying no WhatsApp
G1, 31/01/2025 – Colégio tradicional de São Paulo suspende 34 alunos acusados de praticar cyberbullying
Lupa, 13/02/2025- “Cyberbullying é sintoma da má introdução das crianças no mundo digital”, diz especialista
Quem,23/01/2025 – Modelo com síndrome de Down nomeia projeto de lei contra cyberbullying: ‘lutar pelo que somos’
BBC News Brasil, 24/03/2025 – Com celular e redes sociais, sofrimento e bullying ‘perseguem’ adolescentes por onde quer que vão
Splash/UOL, 26/03/2025 – Chocante e real, ‘Adolescência’ expõe como jovens são reféns da internet
Estadão, 01/04/2025 – “Não faltou amor nem dinheiro. Mas meu filho não via um futuro’’, diz mãe de jovem que atacou escola
[1] O princípio de Pareto, ou regra 80/20, afirma que 80% dos resultados são provenientes de 20% das causas.