EDITORIAL: Expandir, atrair e valorizar

“A universidade brasileira carrega hoje a missão de se preparar para o imprevisível. O avanço acelerado das tecnologias digitais e da inteligência artificial torna incerta a configuração das profissões na próxima década, mas também abre oportunidades inéditas. Esse cenário reforça a necessidade de formar profissionais não apenas qualificados, mas criativos, críticos e adaptáveis”, escreve Francilene Procópio Garcia, presidente da SBPC, para a editoria especial desta sexta-feira

WhatsApp Image 2025-08-22 at 13.19.56O Brasil alcançou 20,5% da população adulta com diploma universitário, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do IBGE, divulgada em junho. A série, iniciada em 2016, mostra um crescimento de cinco pontos percentuais em apenas oito anos. Tal avanço reflete o êxito de políticas de interiorização, ações afirmativas, bolsas e ampliação da rede de ensino superior, e demonstra que, quando há estratégia consistente, o país tem condições de avançar ainda mais na qualificação de sua força de trabalho.

As universidades enfrentam o desafio de formar mais profissionais e preservar sua relevância social em um cenário de restrições orçamentárias, ao mesmo tempo em que precisam responder às rápidas transformações do mercado de trabalho e das tecnologias. Somado a isso, discursos de “empreendedores” e “influenciadores” difundem a ilusão de que o diploma perdeu valor, empurrando jovens para subempregos, precarizados. O absurdo chegou ao ponto de quase um milhão de brasileiros entre 18 e 35 anos adiarem a graduação em 2025 após perderem recursos em apostas virtuais, segundo a Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes). Ao mesmo tempo, dados do Inep mostram que 59% dos que ingressam no ensino superior abandonam o curso antes do fim.

Nos últimos anos, as instituições de ensino superior foram ainda alvo de ataques sistemáticos. Passamos por um governo que vilipendiou universidades e institutos de pesquisa, cortou verbas, desacreditou a produção científica e cristalizou um discurso hostil nos setores extremistas. Essa retórica não é exclusiva do Brasil. Nos Estados Unidos, as políticas conduzidas sob Donald Trump também estão, neste momento, reduzindo financiamento, ameaçando a autonomia acadêmica e disseminando descrédito contra a ciência. A desconfiança semeada por esses movimentos é um risco real para o papel estratégico do ensino superior nas democracias contemporâneas.

A universidade brasileira carrega hoje a missão de se preparar para o imprevisível. O avanço acelerado das tecnologias digitais e da inteligência artificial torna incerta a configuração das profissões na próxima década, mas também abre oportunidades inéditas. Esse cenário reforça a necessidade de formar profissionais não apenas qualificados, mas criativos, críticos e adaptáveis.Ao mesmo tempo, deve afirmar-se como polo de resistência democrática, motor de desenvolvimento sustentável, e espaço de defesa da ciência em um contexto de emergência climática e de avanço de agendas ultraliberais que ampliam desigualdades e alimentam pautas anticientíficas. Isso exige currículos mais flexíveis, estímulo à interdisciplinaridade e valorização da autonomia intelectual e do senso crítico, formando cidadãos capazes de transformar o potencial tecnológico em instrumentos de justiça social, bem-estar coletivo e qualidade de vida. As universidades também são alavancas estratégicas para a reindustrialização sustentável do país, articulando ciência e inovação em áreas como transição energética, bioeconomia, saúde digital e inteligência artificial.

Também é importante pensar para além da formação, na retenção de talentos. O Brasil consolidou um sistema de pós-graduação que o colocou entre os países que mais produzem ciência, chegamos a ocupar a 13ª posição no mundo, mas muitos pesquisadores ainda não encontram oportunidades compatíveis em suas regiões, e acabam migrando ou até mesmo abandonando a carreira científica. Reter esse capital humano exige maior valorização da ciência por parte do Estado e do chamado “setor produtivo”, de modo que conhecimento e inovação se convertam em um projeto de desenvolvimento nacional. É igualmente necessário fortalecer a internacionalização, atraindo talentos de outros países e estimulando a diáspora científica brasileira a contribuir para projetos estratégicos nacionais.

Os efeitos positivos da universidade são palpáveis. A saída do Brasil do Mapa da Fome contou com forte contribuição de projetos acadêmicos de extensão e inovação social em agricultura familiar, alimentação escolar e combate ao desperdício. A interiorização também redesenhou regiões do país: Campina Grande, na Paraíba, para citar um exemplo que conheço bem, se consolidou como polo de tecnologia digital, e a instalação do radiotelescópio BINGO — o maior da América Latina — em Aguiar, no Sertão do estado, simboliza como a presença universitária pode gerar ciência de ponta, transforma economias locais e inspira jovens a permanecerem em suas regiões. Ampliar a presença universitária no Norte e Nordeste é não apenas uma questão de equidade regional, mas um requisito estratégico para que todo o país participe da economia do conhecimento.

Outros dados também mostram o impacto da formação superior no mercado de trabalho. Graduados recebem, em média, três vezes mais do que aqueles que concluíram apenas o ensino médio (IBGE, 2024). A pós-graduação amplia ainda mais esse diferencial, com mestres e doutores podendo chegar a rendimentos quase duas vezes maior que os graduados (Insper, 2025). Ensino superior mudar vidas. Mas o Brasil ainda é insuficiente em sua capacidade de absorver plenamente esses profissionais.

A estratégia que precisamos tomar vai num só sentido: políticas públicas integradas e de longo prazo. Precisamos ampliar o acesso ao Ensino Superior para muito além dos 20% atuais, assegurar permanência por meio de programas de apoio, fortalecer as políticas afirmativas, garantir qualidade diante da expansão acelerada do ensino a distância, investir em pesquisa e estreitar os vínculos entre universidades e setor produtivo. Formar profissionais sem criar condições para que atuem em funções compatíveis é desperdiçar talento e investimento público. Um desperdício que não podemos nos dar ao luxo de permitir.

O Brasil dispõe hoje de um patrimônio humano em formação capaz de redefinir seu futuro. Para aproveitá-lo plenamente, é preciso enxergar a universidade como motor de desenvolvimento regional e nacional, de inovação e, sobretudo, de cidadania. Valorizar o conhecimento científico, expandir com qualidade e reter talentos são passos indispensáveis para que o ensino superior cumpra sua vocação: preparar o país para enfrentar, com autonomia e justiça social, os desafios deste século.

Num ambiente de polarização e desinformação, a universidade precisa reafirmar-se como guardiã da verdade científica e promotora de diálogo social baseado em evidências. É hora de expandir, atrair e valorizar. Se o Brasil quiser ser protagonista no século XXI, precisa apostar sem hesitação em sua maior riqueza: o conhecimento produzido em suas universidades.

Francilene Procópio Garcia, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

 

Veja as notas do Especial da Semana – Universidades e seus benefícios

Folha de S. Paulo, 13/06/2025 – Parcela da população com ensino superior ultrapassa 20% no Brasil pela primeira vez, diz IBGE

Agência Senado, 26/03/2025 – Interiorizar universidades ajudou a desenvolver as regiões, dizem reitores na CE

Matheus Espíndola – Agência UFMG, 10/06/2025 – Expansão universitária brasileira favoreceu regiões já estruturadas, aponta tese

Andifes, 30/07/2025 – Como as universidades federais foram fundamentais para o Brasil deixar o Mapa da Fome

Andifes, 06/08/2025 – 100 anos de universidades no Brasil: por que seu valor vai além do retorno individual?

Folha de S. Paulo , 30/04/2025 – Universidades precisam se reformular para atrair nova geração, dizem especialistas

Extra Classe, 16/06/2025 – Educação avança no Brasil, com expansão do ensino superior e recuo no analfabetismo 

Isabela Vieira – Agência Brasil, 14/06/2025 – Ações afirmativas mudaram “cara da universidade no Brasil”, diz estudo

O Globo, 08/06/2025 – Salário de quem tem pós é quase o dobro do ganho de quem só tem graduação, mostra pesquisa

CNN Brasil, 28/11/24 – Alunos do ProUni desistem menos da graduação do que estudantes sem bolsas

G1, 04/02/2025- 20 anos de história: alunos relatam mudança de vida após conseguirem bolsas em faculdades pelo Prouni

O Globo, 11/02/2025 – Como o Ensino Superior pode mudar a perspectiva de vida de quem passou por presídios

Jornal da USP, 17/06/2025 – Apesar de avanços, conclusão de curso no ensino superior ainda é baixa

O Tempo, 14/07/2025 –Apostas online afastam jovens da faculdade e travam entrada no mercado de trabalho

O Globo – Jovens brasileiros abrem mão da graduação para gastar com bets e jogo do tigrinho, diz pesquisa

The Conversation, 14/08/2015 – Brasil precisa voltar a valorizar a formação de mestres e doutores

Correio Braziliense, 01/05/2025 – O MEC precisa olhar para o ensino superior

Apubh – Caderno CRH traz dossiê especial “As universidades públicas em tempos neoliberais”