A tristeza da tragédia que deixou o Rio Grande do Sul sob águas, com sua população desabrigada e sem perspectiva próxima de recuperar seus lares, está dividindo atenção com um fenômeno comum em momentos de crise: as fake news. Sempre que uma situação crítica exige a mobilização de esforços políticos e da população para salvar vidas e resolver problemas reais, uma realidade paralela e distorcida emerge, principalmente nas redes sociais. Esse é o principal vetor de todas as formas de teorias atualmente, distorcendo fatos, apresentando soluções mágicas e criando teorias vagas e implausíveis. É um verdadeiro teatro do absurdo, abraçado por uma fatia relevante da população.
Muita energia é despendida para desmentir essas fake news. Jornalistas, cientistas e agências de fact-check imediatamente se organizam para verificar a enxurrada de teorias furadas, fotografias alteradas e “lives” com “especialistas”. É um trabalho hercúleo de buscar, analisar e apontar os enganos. No entanto, cada vez mais, esse esforço parece um trabalho de enxugar gelo, convencendo apenas os que já estão vacinados contra essa realidade paralela.
Talvez o grande problema esteja justamente na busca pela verdade e a quem interessa saber a verdade. Harry Frankfurt, professor emérito de filosofia na Universidade de Princeton, escreveu em 2005 um ensaio sobre “bullshit”, que, em português mais elegante, pode ser traduzido por “asneiras” ou “besteiras”. Frankfurt argumenta que os “bullshitters” (as pessoas que propagam asneiras ou besteiras) buscam transmitir uma certa impressão de si mesmos, sem qualquer preocupação com a veracidade das informações.
Tanto os mentirosos quanto os “bullshitters” buscam ser percebidos como verídicos, mas a natureza de seu engano é diferente. Os mentirosos reconhecem a importância da verdade, mas escolhem ocultá-la ou distorcê-la. Já os “bullshitters” ignoram completamente a distinção entre verdade e falsidade. Isso, como o autor argumenta, torna a “besteira” um inimigo mais perigoso da verdade do que a própria mentira. Em uma sociedade na qual a desinformação prolifera, essa distinção é crucial. Enquanto as mentiras podem ser desmascaradas por verificadores de fatos, a “asneira” é mais difícil de combater, pois não se baseia em fatos, em conhecimento.
As mudanças climáticas e os eventos climáticos extremos, como as enchentes no Rio Grande do Sul, têm sido alvo desse tipo de desinformação. Em um ambiente onde as notícias falsas proliferam, muitas vezes promovidas por interesses econômicos e políticos, a “asneira” desempenha um papel central. Diferente dos mentirosos, que sabem a verdade mas a distorcem, os “bullshitters” propagam informações sem qualquer preocupação com sua veracidade. Isso cria um cenário em que a verdade é completamente ignorada, minando os esforços para lidar eficazmente com crises ambientais.
Políticos que falam sobre assuntos complexos sem o devido conhecimento frequentemente recorrem à “bullshit” para preencher o vazio de informações. O mesmo se aplica aos chamados “influencers”, pessoas que ganham seguidores nas redes sociais e são, assim, alçados a formadores de opinião. Sem qualquer conhecimento ou embasamento, suas declarações irresponsáveis podem se espalhar rapidamente, influenciando a opinião pública e colaborando para a criação desse multiverso surreal.
Dados do CGEE sobre percepção pública da Ciência apresentados esta semana corroboram essa teoria: 61% das pessoas dizem que se informam com frequência ou de vez em quando sobre ciência, tecnologia saúde e meio-ambiente por meio de redes sociais, aplicativos de mensagens e plataformas digitais; ao passo que 50% dizem que nunca se informam por livros. Apenas cerca de 20% dos entrevistados declararam se informar por meio de jornais e rádios.
Por isso, o grande problema das fake news e do público que vive em torno delas é muito maior que a fabricação de mentiras, que suporia um conhecimento da verdade. É, assustadoramente, o desprezo pelo conhecimento, pelo embasamento, pelo que é verdadeiro e verificável. Cria-se uma opinião baseada em nada, que satisfaz a identidade e o ego dessas pessoas, sem qualquer interesse se o que dizem é comprovável ou não. Uma mentira pode ser desmentida com a verdade. Mas uma opinião vazia, baseada naquilo em que se quer acreditar simplesmente, é solo fértil para uma realidade paralela e difícil de ser refutada.
Karl Popper, o filósofo austro-britânico famoso por definir o critério que distingue ciência da não ciência, o princípio da falseabilidade, já dizia que uma teoria, para ser científica, tem que ser refutável. Ou seja, na ciência, uma teoria pode ser testada e demonstrada como verdadeira ou falsa. A pseudociência, por sua vez, não é verificável ou refutável, não tem como provar a falsidade de suas hipóteses, sempre tem uma explicação anterior que não é possível ser testada com critérios lógicos.
A disseminação de fake news não é apenas o problema da mentira, da enganação, mas de produzir falácias em larga escala. Elas não se limitam a enganar, mas têm o propósito de influenciar massivamente, tanto politicamente quanto financeiramente. Essa prática assume proporções industriais, com pretensões de influenciar o cenário político, como também capitalizar sobre a desinformação e a ignorância. Assim, as fake news se tornam uma poderosa ferramenta de manipulação e ganho, impactando não só o debate público, mas também integridade democrática.
Em um mundo onde a verdade é frequentemente negligenciada, a “asneira” não apenas distorce a percepção pública, mas também enfraquece a capacidade da sociedade de tomar decisões informadas. Combatê-la requer um esforço conjunto para promover a alfabetização midiática, valorizar a verdade e a realidade dos fatos, e responsabilizar aqueles que deliberadamente ignoram a distinção entre fato e ficção.
A importância do conhecimento científico não pode ser subestimada. Em tempos de crise, como as mudanças climáticas e emergências sanitárias, como a pandemia de covid-19, o conhecimento científico é crucial para a formulação de políticas eficazes e a proteção da saúde pública. Falsas realidades e o desprezo pelo conhecimento não apenas minam a confiança pública nas instituições, mas também colocam em risco a vida das pessoas e o desenvolvimento salutar de nossa sociedade.
Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC
Leia abaixo as nota do Especial da Semana – Fake news
Agência Brasil, 01/04/2024 – Quase 90% dos brasileiros admitem ter acreditado em fake news
G1, 13/05/2024 – Quaest: 31% disseram ter recebido alguma notícia falsa sobre a tragédia no Rio Grande do Sul
Agência Brasil, 14/05/2024 – Fake news prejudicam tomada de decisão por afetados em catástrofe
CNN Brasil, 13/05/2024 – Para ministros do STF, fake news sobre enchentes no RS reacendem necessidade de regular plataformas
Jornal da USP, 25/03/2024 – Como identificar e combater as fake news no Brasil?
Nexo, 18/01/2024 – A desinformação é o maior risco global: como lidar com ela?
Jornal da USP, 25/08/2023 – Desinformação disfarçada de ciência
Jornal da USP, 11/08/2023 – Desinformação científica: uma pandemia de mentiras
Jornal da USP, 05/12/2022 – Alta lucratividade é o que mantém o mercado digital de fake news
Metrópoles, 14/05/2024 – Por que é patológico e inútil querer exterminar as fake news
Folha de S. Paulo, 14/05/2024 – Onde houver crise haverá fake news e propaganda suja
Brasil Escola – O que são Fake News?
Jornal da USP, 06/10/2020 – Engajamento de plataformas digitais é essencial para combate às fake news
The Independent, 10/01/2024 – Fake news impulsionadas por IA são um risco global urgente antes de grandes eleições