EDITORIAL – Independência e morte

“Nossa independência, após dois séculos, ainda está incompleta. Enquanto os direitos fundamentais de grande parte da população continuarem a ser ignorados ou atacados, a ideia de um Brasil verdadeiramente independente será nada mais que uma utopia”, escreve o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro

WhatsApp Image 2024-09-06 at 14.55.11Celebrada com pompa e retórica grandiosa a cada 7 de setembro, a independência do Brasil, desde o seu início, serviu a interesses restritos e excludentes. O ato de romper os laços com Portugal, há mais de dois séculos, beneficiou principalmente uma elite branca e latifundiária, que seguiu concentrando poder e riqueza. Para os povos indígenas e as populações negras, bem como para a grande maioria de brancos pobres, a tão proclamada promessa de liberdade e justiça jamais se realizou plenamente. Hoje, passados dois séculos, as batalhas por cidadania, por terras e pelo direito à vida continuam, como marcas de um país que insiste em invisibilizar e violentar aqueles que deveriam ser igualmente protegidos e respeitados. A “independência” para muitos nunca passou de uma abstração distante, tão irreal quanto inalcançável. Enquanto para uns a liberdade foi celebrada, para outros, a opressão seguiu seu curso, disfarçada, mas brutal.

Os povos indígenas, que somam mais de 1 milhão de pessoas, enfrentam um genocídio sistemático. O número de indígenas assassinados no Brasil cresceu 15% em 2023 segundo relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O mesmo relatório aponta que no ano passado, 2023, foram registrados 276 casos de invasões, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio em pelo menos 202 territórios indígenas espalhados por 22 estados do Brasil. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) denuncia que mais de 60% das terras indígenas ainda aguardam demarcação, expondo essas comunidades a uma vulnerabilidade crescente.

A população negra, por sua vez, enfrenta o racismo estrutural em várias esferas da sociedade. O Atlas da Violência de 2023 revela que, em 2021, 77% das vítimas de homicídios no Brasil eram negras – em boa parte, jovens negros do sexo masculino. O relatório “Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil”, lançado em agosto pelo Unicef, mostra que mais de 15 mil crianças e adolescentes foram mortos de forma violenta no Brasil nos últimos três anos – 83% delas crianças pretas. A disparidade educacional também é gritante: a taxa de escolarização no ensino superior entre homens negros é cerca de metade da dos homens brancos, um dado que pouco mudou nos últimos anos. A pobreza atinge desproporcionalmente essas famílias, que constituem 67% das pessoas abaixo da linha da pobreza, segundo dados do IBGE.

Esses números deixam claro que o genocídio das populações indígenas e negras no Brasil é uma constante histórica que remonta aos tempos coloniais e que continua até hoje. O genocídio dessas populações faz parte de um projeto que reforça desigualdades e perpetua a exclusão social e econômica. Embora haja ampla cobertura midiática e vasta produção acadêmica sobre o tema, os avanços para reverter esse cenário são irrisórios. O sistema de poder no Brasil continua a reforçar essas desigualdades, tornando a luta pela vida e dignidade dessas populações uma questão de resistência diária.

A conclusão que devemos tirar é que nossa independência, após dois séculos, ainda está incompleta. Enquanto os direitos fundamentais de grande parte da população continuarem a ser ignorados ou atacados, a ideia de um Brasil verdadeiramente independente será nada mais que uma utopia, uma “Pasárgada” inalcançável. O caminho para uma independência verdadeira exige reparação histórica, demarcação de terras indígenas, igualdade racial e a construção de uma sociedade na qual todos possam desfrutar dos direitos garantidos em nossa Carta Constitucional de 1988.

Uma palavra, ainda, sobre a independência. Quando a atual Diretoria da SBPC assumiu, estávamos a um mês do sete de setembro de 2021 – quando começava o 200º ano de nossa independência. Por isso mesmo, decidimos realizar uma Virada da Independência, nas 24 horas que foram das 16h30 do dia 6 de setembro de 2021 ao mesmo horário no dia seguinte, que alude ao momento em que Dom Pedro proclamou nossa separação de Portugal. Era uma época em que o governo mostrou indiferença ante o evento – talvez porque não fosse adepto da independência nacional. Esta é uma questão que para nós sempre foi relevante e continuará a sê-lo.

Independência remete a soberania, mas há dois sentidos para essa palavra: há a soberania nacional, que é literalmente não estar subordinado, colonialmente, a uma metrópole externa. E há sua base ética e constitucional, que é a soberania popular – que consiste em as decisões importantes num país serem tomadas pelo seu povo. Povo, aliás, desde os gregos é entendido como sendo composto mais pelos pobres do que pelos ricos. Por isso, a soberania nacional – a independência – requer a soberania por parte do povo. E, quando tantos brasileiros, em especial os indígenas e os negros, são privados de direitos – inclusive o direito à vida – a democracia fica limitada, e a independência, inconclusa.

Esta edição especial de sexta-feira reúne dados e informações abundantes que evidenciam essas realidades e propõe que repensemos nossa trajetória como nação. É hora de agir, de transformar conhecimento em mudança e encarar as injustiças que ainda mantêm nosso Brasil refém de uma independência inconclusa.

Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

 

Veja as notas do Especial da Semana – Independência Inconclusa

Folha de S. Paulo, 27/08/2024 – Desnutrição cresceu entre crianças indígenas em 2023, e acesso a educação seguiu pior entre negros

CIMI, 29/08/2024 – Nota do Cimi: com fracasso evidente da conciliação, é urgente que STF decida sobre Lei 14.701 e reafirme direitos indígenas

Deutsche Welle Brasil, 27/08/2024 – Massacre marca etnia indígena que luta contra Marco Temporal

Deutsche Welle Brasil, 10/08/2024 – Guarani-Kaiowás narram violência em disputa por território

UOL, 22/07/2024 – Número de indígenas assassinados no Brasil cresceu 15% em 2023

CIMI, 21/07/2024 – Violência contra indígenas persistiu em 2023, ano marcado por ataques a direitos e poucos avanços na demarcação de terras

Congresso em Foco, 02/07/2024 – Comissão da Amazônia aprova projeto que reconhece genocídio indígena em 1500

Nexo, 28/04/2024 – “Não há democracia em Estado que mantém genocídio indígena”

Le Monde Diplomatique, 20/03/2024 – Sessenta anos do golpe e a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade

Nexo – 28/12/2023 – A violência contra indígenas no Brasil, de FHC a Bolsonaro

DW Brasil, 05/06/2024 – Brasil mata mais do que registram números oficiais

Folha de S. Paulo, 29/08/2024 – Discriminação racial tira R$ 14 bilhões de trabalhadores negros no Brasil, diz estudo

Agência Brasil, 13/08/2024 – Crianças e adolescentes negros são 83% das vítimas de mortes violentas

O Globo, 18/06/2024 – Negros foram 76,5% das vítimas de homicídio no Brasil em 2022, aponta Atlas da Violência

Deutsche Welle Brasil, 09/07/2024 – Abordagem policial violenta a jovens negros é rotina no Rio

Correio Braziliense, 12/04/2024 – Jovens negros são 90% dos internos nas instituições socioeducativas do DF

Alma Preta, 14/09/2023 – Violência é a principal memória da infância de homens negros e periféricos, segundo pesquisa

Deutsche Welle Brasil, 21/03/2023 – “Genocídio negro é um projeto que está em curso”

G1, 24/04/2024 – Portugal reconhece pela 1ª vez culpa por escravidão e massacre no Brasil e fala de reparação