Ler é mais do que um hábito: é uma experiência capaz de transformar nossa visão de mundo, abrir horizontes e conectar-nos ao outro. No entanto, no Brasil, essa experiência ainda esbarra em barreiras econômicas e estruturais. O preço elevado dos livros, a concentração desigual de livrarias e o impacto de grandes plataformas digitais colocam em risco o acesso democrático à leitura e a diversidade cultural. Aprovado na Comissão de Educação e Cultura do Senado nesta semana, o Projeto de Lei 49/2015, se bem regulamentado e implementado, pode vir a ser uma ferramenta importante para democratizar o acesso aos livros no País.
Inspirado na Lei Lang da França, em vigor há mais de 40 anos, o PL 49/2015, ou “Lei do Preço de Capa”, ou ainda “Lei José Xavier Cortez”, proposto em 2015 pela então senadora Fátima Bezerra (agora governadora no Rio Grande do Norte), busca preservar as livrarias e editoras independentes, limitando os descontos nos primeiros 12 meses de lançamento. É uma tentativa de frear o domínio de gigantes como a Amazon e proteger as livrarias de bairro, essenciais para a difusão da cultura e do pensamento crítico.
Atualmente, o Brasil possui menos de três mil livrarias, com quase duas mil concentradas no Sudeste, enquanto o Norte, em situação oposta, conta com apenas 98. Quase metade dos municípios brasileiros não tem sequer um estabelecimento desse tipo, uma realidade que evidencia e aprofunda as desigualdades regionais. A ausência desses espaços não se resume à perda econômica; significa também a falta de ambientes onde o pensamento crítico floresce e novas gerações de leitores são formadas, privando comunidades do contato essencial com a cultura e a reflexão.
Mas a formação de leitores no Brasil enfrenta desafios ainda mais complexos. A transformação dos hábitos de leitura pelas redes sociais é, talvez, o mais significativo deles. Nessas plataformas, o consumo rápido e fragmentado de informações — impulsionado por vídeos curtos, memes e threads — promove uma superficialidade que compromete a capacidade de mergulhar em narrativas longas e de desenvolver pensamento crítico. A falta de profundidade é um fenômeno com consequências concretas: a disseminação de fake news, o anti-intelectualismo, o negacionismo científico, a ascensão de extremismos políticos, a proliferação de discursos de ódio e o culto a gurus, coachs e influencers. Essa dieta intelectual rasa enfraquece o discernimento e nos torna mais vulneráveis a manipulações e desinformação, criando um ambiente no qual opiniões simplistas e polarizações ganham mais espaço do que o debate reflexivo e informado.
Esse cenário se agrava com políticas da extrema-direita que visam a restringir ainda mais o acesso ao conhecimento, com propostas para banir das escolas obras que abordam temas considerados desconfortáveis ou controversos.
A luta pela leitura e contra a censura e o embotamento foi muito bem retratada na obra Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Publicado em 1953, o romance projeta um futuro sombrio em que todos os livros são banidos e o pensamento crítico, erradicado. Guy Montag, o protagonista, trabalha como “bombeiro” — mas, ironicamente, sua missão é queimar livros, num ato simbólico de apagar ideias e sufocar a reflexão. A narrativa alertava para os perigos de uma sociedade que abdica da leitura em troca da conformidade e do entretenimento superficial.
Mas ainda temos sinais de esperança. A 27ª Bienal do Livro de São Paulo, em setembro, atraiu mais de 722 mil visitantes e registrou um crescimento significativo no público jovem. O evento provou que, apesar das dificuldades, o amor pelos livros e pela leitura permanece vivo e relevante.
Semanas antes, em uma surpreendente carta aos jovens padres, divulgada pelo Vaticano em agosto, o papa Francisco ressaltou que a leitura de romances e poemas não é apenas uma forma de entretenimento, mas um meio poderoso de educar tanto a mente quanto o coração, desenvolver empatia e reconhecer o valor das diferentes experiências e visões de mundo. Segundo o pontífice, essa capacidade de enxergar o pluralismo da experiência humana é essencial para promover uma convivência mais respeitosa e aberta ao diálogo.
Caetano Veloso também nos lembra em sua canção de 1997 que os livros podem transformar a alma e abrir novos horizontes: “Mas os livros que em nossa vida entraram/ São como a radiação de um corpo negro / Apontando para a expansão do Universo / Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso / (E, sem dúvida, sobretudo o verso) / É o que pode lançar mundos no mundo.”
Promover o acesso aos livros é promover cidadania, pluralidade e esperança — pilares importantes para construir um país mais justo e preparado para o futuro. A Lei do Preço de Capa é um passo nessa direção, mas não é suficiente para resolver as desigualdades no acesso ao conhecimento. É fundamental complementá-la com incentivos fiscais, subsídios e uma política nacional de leitura, envolvendo escolas, bibliotecas e campanhas educativas capazes de formar novos leitores e fortalecer nossa cultura. Precisamos de mais histórias que inspirem e menos superficialidade que distraia.
Que a leitura não seja apenas um prefácio ou uma orelha, mas uma experiência transformadora. Falamos tanto hoje em “experiência” — tudo é vendido como tal, até mesmo uma refeição —, que o termo se inflaciona e se desgasta. Mas, no caso das Artes e da Literatura, ele encontra seu sentido pleno: a frequentação desses universos é uma das formas mais intensas de transformar e enriquecer a vida.
Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC
Veja as notas do Especial da Semana – Livros e leitores
Agência Senado, 15/10/2024 – CE do Senado aprova política nacional para baratear preço de livros
Correio Braziliense, 15/10/2024 – No Dia do Professor, Senado aprova política para baratear preço dos livros
PublishNews, 16/10/2024 – Lei Cortez: livreiros independentes explicam potencial de proteção às livrarias e à bibliodiversidade
Jornal da USP, 16/10/2024 – Bibliodiversidade e preço do livro: o debate em torno da Lei Cortez
Folha de S. Paulo, 07/12/2023 – Preço do livro é o que mais desmotiva novos leitores, segundo pesquisa inédita
Agência Brasil, 07/12/2023 – Brasil tem 25 milhões de compradores de livros
Folha de S. Paulo, 20/09/2024 – Recordes na Bienal indicam que hábito de comprar livros passa por mudanças
CBN Campinas, 23/04/2024 – Brasil perdeu 4,6 milhões de leitores nos últimos 4 anos
Estadão, 22/05/2024 – Venda de livros cai mais uma vez no Brasil; mercado editorial faz balanço da crise
O Globo, 24/08/2024 – Na contramão das livrarias, sebos ganham força com preciosidades no acervo, eventos culturais e bom papo
The Guardian, 11/10/2024 – “Adoro todo o ambiente e posso passar horas navegando”: como as livrarias de repente se tornaram legais?
Piauí, 26/01/2024 – Japão tem quatro vezes o número de livrarias do Brasil
Carta Capital, 04/08/2024 – Papa incentiva a leitura e revela seu amor pelas tragédias
Vatican News – O Papa: a literatura educa o coração e a mente e abre à escuta dos outros
BBC Brasil, 16/01/2024 – BookTok: como TikTok está transformando jovens em leitores e autores em best-sellers
Veja, 03/06/2024 – “Os livros nos tornam mais humanos”, diz neurocientista Michel Desmurget
O Globo, 23/05/2024 – Seu filho lê? Especialista fala da grande importância dos livros na infância e como formar leitores desde cedo
CNN Brasil, 06/11/2023 – 66% dos alunos brasileiros não leem textos com mais de dez páginas, diz estudo