O Brasil marcou, no dia 13 de julho passado, os 35 anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069/90. Referência internacional em políticas públicas de proteção à infância e à adolescência, o ECA consolidou uma série de avanços legais e institucionais, como a criação dos Conselhos Tutelares, a estruturação do Sistema de Garantia de Direitos e a inspiração para legislações complementares como a Lei da Escuta Protegida, a Lei Menino Bernardo e a Lei Henry Borel.
Mas, ao longo dessas três décadas e meia, o Brasil e o contexto em que o ECA foi concebido mudaram radicalmente. Paralelamente ao mundo físico que conhecemos, tornou-se cada vez mais onipresente um universo digital, intangível e ambíguo, que deslocou limites e normas para uma zona cinzenta. Seus impactos, no entanto, são concretos — e impõem desafios para os quais ainda não soubemos dar respostas legais eficazes.
Na última semana, um vídeo publicado pelo influenciador Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, reacendeu a urgência desse debate ao denunciar, com exemplos concretos — e escandalosos — a adultização e a exploração sexual de crianças e adolescentes nas redes sociais. Com mais de 40 milhões de visualizações até o momento, o vídeo denunciou a crescente exposição de crianças nas plataformas digitais, muitas vezes com fins comerciais e exploratórios.
Mas o que Felca mostrou, de forma contundente, não é novo — tampouco velado. Foi, como no conto do Rei Nu, de Andersen, a voz da criança que finalmente nomeou o óbvio. Um dos canais citados esteve disponível, no YouTube, no Instagram e em outras plataformas, por cinco anos — com milhões de seguidores e sem qualquer regulação ou responsabilização. Talvez a revelação mais inquietante diga respeito à inércia institucional: o vácuo normativo incompatível com os princípios fundamentais do ECA, tratado com vistas grossas por tempo demais.
Segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil, 93% da população de 9 a 17 anos utiliza a internet. Cerca de 23% têm contato com o ambiente digital antes dos seis anos. Entre os usuários dessa faixa etária, 42% têm perfil no YouTube; 69%, no Instagram; 45%, no TikTok. São dados que reforçam a urgência de se estabelecer regras claras sobre acesso, publicidade, algoritmos, proteção de dados, exposição de imagem e, principalmente, responsabilização em casos de abuso e violação.
O vídeo desencadeou uma grande mobilização da sociedade e pressionou os poderes públicos a agir. A Câmara dos Deputados começou a priorizar o tema, e mais de três dezenas de projetos de lei foram apresentados, abordando a exposição indevida, a adultização, a exploração sexual e outros crimes contra crianças e adolescentes na internet. Entre as propostas, destacam-se medidas para proibir a monetização de conteúdos com crianças, obrigar plataformas digitais a criar mecanismos de verificação de idade e responsabilizar juridicamente pais e responsáveis por exposições inadequadas.
No plano internacional, o Comitê dos Direitos da Criança da ONU, em sua revisão recente sobre o Brasil, recomendou a adoção de uma Política Nacional de Proteção de Crianças no Ambiente Digital e a proibição do uso de dados pessoais de crianças em sistemas de inteligência artificial. São diretrizes relevantes, mas ainda pouco incorporadas à prática legislativa e institucional brasileira.
Essas iniciativas precisam ser tratadas com rigor técnico, diálogo qualificado e coerência com os princípios atemporais que estão muito bem estabelecidos no ECA. O momento exige um esforço de atualização legislativa que enfrente os desafios do ambiente digital sem renunciar os compromissos históricos com os direitos da infância.
Nesse sentido, a moção publicada ontem pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) reforça a importância de uma regulamentação das plataformas digitais orientada por evidências científicas e pelo interesse público. O texto, aprovado pela nossa Assembleia Geral de Sócios, reunida em 17 de julho durante a 77ª Reunião Anual da SBPC, em Recife, destaca a urgência de preservar o dever de cuidado das plataformas e de fortalecer a soberania tecnológica brasileira, reduzindo a dependência de sistemas e modelos de negócios que operam à margem da legislação nacional.
É necessário reconhecer que, embora o ECA continue sendo um marco transformador, ele precisa agora de instrumentos atualizados para atuar em um cenário cada vez mais complexo e dinâmico. Isso inclui investimentos públicos em fiscalização, educação digital, mecanismos de denúncia e tecnologias de verificação de idade, além da responsabilização efetiva de plataformas, criadores de conteúdo e adultos responsáveis.
O vídeo de Felca provocou indignação porque verbalizou uma realidade conhecida e naturalizada. Não podemos mais ignorar que o modelo de negócios de muitas plataformas digitais se sustenta também na exposição desprotegida da infância. Não se trata apenas de reagir a casos de grande repercussão, mas de construir uma política pública robusta e contínua, com foco na prevenção e na proteção integral.
As tecnologias continuarão a evoluir, e rapidamente. A legislação precisa acompanhar esse movimento sem perder de vista seu compromisso central: garantir os direitos e o bem-estar de crianças e adolescentes em todas as esferas da vida — inclusive no ambiente digital.
Francilene Garcia, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC
Veja as notas do Especial da Semana – Adultização, ECA e a regulação digital
Agência Câmara de Notícias, 12/08/2025 – Denúncia sobre uso indevido de imagens de crianças motiva 32 projetos na Câmara dos Deputados
O Globo – Estatuto da Criança e do Adolescente chega aos 35 anos com avanços e lacunas no território virtual
Agência Senado – ECA completa 35 anos com avanços históricos e novos desafios
Folha de S. Paulo, 13/08/2025 – Pela liberdade de expressão pedófila
The Conversation Brasil, 13/08/2025 – Exposição de menores nas mídias sociais é um problema global gravíssimo, que pode ser evitado
BBC Brasil, 13/08/2025 – Adultização: ‘Felca conseguiu unir de Érika Hilton a Nikolas Ferreira e pauta cobrança por responsabilização das redes’
G1, 13/08/2025 – Monetização, exploração de menores e redes de pedofilia: entenda denúncias feitas por Felca
G1, 13/08/2025 – Por que redes sociais têm tantos casos de exposição de crianças mesmo com sistemas de detecção
Agência Câmara – Luiz Gustavo Xavier,13/08/2025 – Entidades pedem aprovação de projeto do Senado sobre proteção de crianças em ambientes digitais
Agência Brasil,-Mariana Tokarnia , 13/08/2025 – Especialistas alertam que crianças não podem ser “produto” das redes
SBP, 12/08/2025 – SBP cobra do Congresso Nacional tolerância zero a crimes virtuais contra crianças e adolescentes e exige regulamentação de plataformas
Agência Câmara de Notícias, 14/08/2025 – Comissão aprova regras para a atividade de influenciador digital mirim
MDH, 14/08/2025 – Conanda defende aprovação urgente de projeto de lei que protege crianças e adolescentes em ambientes digitais
CNN Brasil, 12/08/2025 – Adultização: o que Meta e Google estão fazendo após denúncias de Felca
Folha de S. Paulo, 14/08/2025 – O que cabe às famílias na proteção da infância na internet
Estadão – Pais devem ficar atentos aos códigos usados para pornografia infantil nas redes sociais: veja quais
Folha de S. Paulo, 15/08/2025 – Protejam suas crianças
Folha de S. Paulo, 14/08/2025 – Felca mostra força dos debates reais no mundo de devaneios das redes sociais