A sanha privatizante que afeta certas gestões estaduais e municipais do país avança cada vez mais sobre um dos pilares essenciais da nossa democracia: a educação pública. Sob a roupagem da modernização e da “melhor” eficiência administrativa, oculta-se um projeto que desmantela o papel do Estado como garantidor do direito à educação gratuita, de qualidade e universal.
São Paulo, Paraná e Minas Gerais têm protagonizado esta cruzada ideológica na educação, na qual a terceirização da gestão educacional é apresentada como uma solução administrativa. Esquecem-se, no entanto, de que a educação não deve ser confundida com um serviço a ser ofertado segundo as lógicas de mercado.
O recente projeto do governador Tarcísio de Freitas (SP), que pretende entregar a gestão de quase 150 escolas à iniciativa privada—justamente aquelas com melhor infraestrutura e desempenho, e não as mais vulneráveis, como poderia imaginar o senso comum—deixa evidente o que está por trás de tamanho empenho. O objetivo claramente não é aprimorar a educação pública, mas sim criar nichos de mercado lucrativos para empresas do setor educacional.
Em Minas Gerais, o “Projeto Somar” tropeçou. O Tribunal de Contas suspendeu o edital de credenciamento das organizações privadas que assumiriam a gestão das escolas, após denúncias de irregularidades. Entre os entes credenciados, encontravam-se empresas cuja especialidade nada tinha a ver com a educação, algumas atuando no ramo de energia solar. O risco é enorme em uma área estratégica para o Estado brasileiro.
No Paraná, em dezembro, 177 escolas estaduais receberam consultas públicas para a votação do Projeto Parceiro da Escola. A comunidade escolar de 10 delas aprovou a adesão ao programa, enquanto outras 84 o recusaram. Nos 83 colégios restantes, que não atingiram a quantidade mínima de votos, coube à Secretaria da Educação decidir a inclusão ou não no projeto, optando pela implementação em 70 dessas escolas. Apesar de uma resistência expressiva da comunidade escolar, o Tribunal de Justiça determinou há duas semanas a continuidade do programa, reforçando a determinação do governo estadual em avançar com a terceirização da gestão escolar, ignorando as contestações e preocupações levantadas por educadores e especialistas. Olha-se para os potenciais lucros, em detrimento dos alunos e do papel da educação.
A educação é um direito fundamental, e sua privatização representa não apenas um retrocesso civilizatório, mas uma afronta à ordem jurídica que rege nosso país. Está muito claro em nossa Constituição Federal que cabe ao Estado prover o ensino público e gratuito. Ao conceder a administração e infraestrutura de escolas à iniciativa privada, os governos estaduais e municipais rompem com esse princípio e negam a própria essência da educação como bem público e direito social.
Esses projetos de leiloar escolas públicas têm um agravante que passa despercebido no calor dos debates: transfere-se para o setor privado não apenas a infraestrutura e a gestão, mas também o controle sobre dados sensíveis dos estudantes e suas famílias. Em tempos em que informações são um ativo valioso, tal transferência sem as devidas salvaguardas institucionais expõe o público a diversos riscos com relação à sua liberdade, privacidade e dignidade.
A questão, portanto, não é meramente administrativa, mas sim política e moral: queremos um Estado que assegure direitos ou um que os entregue à mercê das empresas e das forças de mercado? Não há neutralidade possível nessa escolha. A defesa da escola pública é, antes de tudo, a defesa da democracia e da cidadania plena.
Privatizar a educação não é apenas um erro de gestão, mas uma abdicação da responsabilidade estatal para com as gerações futuras. O Estado brasileiro não pode abrir mão desse dever constitucional. A imposição de Parcerias Público-Privadas na educação compromete a equidade do ensino e fere os princípios de um Estado comprometido com a justiça social.
A escola pública é o berço da cidadania e da igualdade. Arriscar esse patrimônio em nome de interesses econômicos privados é não apenas um equívoco estratégico, mas um atentado ao futuro do Brasil como nação soberana e justa.
Renato Janine Ribeiro, Francilene Procópio Garcia e Paulo Artaxo, respectivamente, presidente e vice-presidentes da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC.
Leia abaixo as notas do Especial da Semana – Privatização de escolas públicas
Folha de S. Paulo, 30/01/2025 – 50 escolas mais vulneráveis de SP terão gestão privada, diz secretário de Ricardo Nunes
Jornal GGN, 31/12/2024 – Com Tarcísio em 2024, São Paulo bate recorde de privatizações em 25 anos
G1, 29/11/2024 – Governo de SP seleciona escolas com melhor desempenho acadêmico e infraestrutura para privatizar gestão e manutenção
ALMG, 11/11/2024 – Princípios constitucionais estariam ameaçados com privatização de escolas
Mídia Ninja, 13/11/2024 – Estudantes se unem contra privatização das escolas em Minas Gerais: ‘Educação não é mercadoria’
UOL, 29/10/2024 – Privatizar escolas deveria estar no fim da fila para Tarcísio
Carta Capital, 23/01/2025 – A privatização das escolas e a captura do Estado
Brasil de Fato, 26/12/2024 – Escolas cívico-militares, corte no orçamento e privatização da gestão: Tarcísio fragiliza a educação em São Paulo, dizem especialistas
Jornal da USP, 25/11/2024 – Programas de militarização do ensino assemelham-se à privatização escolar
Jornal GGN, 12/11/2024 – Modelo de privatização das escolas não atinge área pedagógica, garante diretor do BNDES
Jornal GGN, 06/11/2024 – Leilão das escolas públicas vai resultar na privatização do ensino público
Outras Palavras, 16/12/2024 – SP: merenda terceirizada e ensino em ruínas
A Tribuna, 22/01/2025 – Governo reverte decisão e continua com projeto de terceirização de escolas do Paraná
G1 – Justiça suspende edital de programa que terceiriza gestão de colégios estaduais no Paraná
APP Sindicato, 12/12/2024 – Professores(as) lançam carta aberta à população contra a privatização das escolas
Paragráfo2, 09/12/2024 – Mais de mil professores assinam carta contra a privatização de escolas do Paraná
Veja Rio, 5/11/2024 – Privatização de escolas públicas: um lamento pela educação brasileira
Blog Sou_Ciência/Folha de S. Paulo – 11/06/2024 – Vende-se: o futuro do Brasil
DW-Brasil, 25/04/2024 – Por que educação pública não deve ser privatizada
Vermelho, 30/01/2025 – Ricardo Nunes e o golpe contra a educação pública: privatização, exclusão e o futuro das escolas em risco
Centro de Referência de Educação Integral, 14/09/2019 – Conheça 3 países que apostaram na privatização da educação e recuaram
Correio do Litoral, 07/02/2025 – Ministério Público do Paraná considera Parceiro da Escola inconstitucional
Centro de Referência de Educação Integral, 05/02/2025 – Privatização da gestão de escolas públicas em SP preocupa educadores
APP Sindicato, 06/02/2025 – Privatização: professores(as) da educação especial denunciam perdas de aulas em escolas privatizadas