Nos últimos 80 anos, é possível identificar duas linhas opostas na cúpula da Igreja Católica.
A primeira linhagem se inicia com o Papa João XXIII (1958–1963), que convocou o Concílio Vaticano II. Ele abriu um processo de arejamento da Igreja, o assim-chamado aggiornamento (lit. “atualização”), depois continuado por Paulo VI (1963–1978), cujo longo pontificado consolidou boa parte do legado de João XXIII. Essa linha culmina com o brevíssimo período de João Paulo I (1978), falecido em circunstâncias até hoje suspeitas — muitos acreditam que tenha sido assassinado, hipótese inclusive sugerida no filme O Poderoso Chefão 3. É a linha que Francisco (2013–2025) retomou, em seu firme pontificado.
A segunda tradição remonta ao Papa Pio XII (1939–1958), o último papa claramente reacionário, notório pelo silêncio diante do Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial, além de seu combate intransigente ao comunismo. Essa linha foi continuada — embora de forma mais moderna e democrática — por João Paulo II (1978–2005), cujo pontificado foi o mais longo do período de que estamos tratando, e depois por Bento XVI (2005–2013). É uma linhagem conservadora, talvez próxima da ideia do “Cristo Rei” — uma visão hierárquica e mesmo autoritária da Igreja — em oposição à imagem do Cristo que acolhe os pobres, os desfavorecidos e os vulneráveis, como propõe a Teologia da Libertação, tão influente na América Latina. Essa teologia, aliás, sofreu duros reveses durante o pontificado de João Paulo II. Depois tivemos Bento XVI, reacionário como seu antecessor, mas sem seu carisma, que não aguentou ficar na Santa Sé até o fim.
Nesse contexto, surge o Papa Francisco, retomando o rumo tomado por João XXIII. Vale lembrar que, até o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica, em suas missas, ainda amaldiçoava os judeus por terem supostamente assassinado Jesus. Essa condenação não se restringia aos contemporâneos de Cristo, mas se estendia até os judeus dos dias atuais. Também era comum afirmar que apenas os católicos teriam acesso à salvação eterna — o que condenava inclusive outras denominações cristãs ao inferno, além, claro, das outras religiões.
João XXIII rompe com essa mentalidade ao convocar o Concílio Vaticano II, sob o signo do ecumenismo e do diálogo inter-religioso. Na década de 1960, prevalece a ideia de que as diversas religiões monoteístas veneram o mesmo Deus — seja Ele chamado de Deus, Javé, Jeová, Alá. Mais tarde, esse movimento se estende também às religiões não monoteístas, como as de matriz africana. Com isso, forma-se um espaço de respeito mútuo no campo espiritual, o que antes era raríssimo. Tanto assim que esse processo, deflagrado por João XXIII, fecundou outras religiões, que também se dispuseram a uma visão menos dogmática e mais dialógica do fenômeno religioso e dos valores humanos em geral.
Tal processo desloca o foco da forma para o conteúdo: diminui-se a ênfase na liturgia, dando-se mais importância ao ético e ao espiritual. Por séculos, disputas sobre aspectos litúrgicos — como a cor dos paramentos, a posição da cruz, o local do altar em relação aos fiéis — geraram divisões profundas e até guerras religiosas. O diálogo ecumênico iniciado por João XXIII muda esse panorama: aproxima as igrejas pelo conteúdo, e não pela forma. As diferenças litúrgicas tornam-se secundárias, e até mesmo os dogmas são relativizados.
O ponto culminante dessa tradição talvez esteja na famosa frase do Papa Francisco: “Melhor ser ateu do que um católico hipócrita.”
Essa declaração foi feita em 23 de fevereiro de 2017, durante uma homilia matinal na Casa Santa Marta, sua residência no Vaticano. Com essa frase, Francisco priorizou o valor da ética sobre a identidade religiosa formal, do espírito sobre a aparência, e do acolhimento sobre o julgamento.
Ou seja, nestes 60 anos, houve um caminhar lento, revertido em certos momentos, mas que graças a Francisco se retomou, reduzindo os formalismos e ampliando o compromisso ético da religião. Eu o sintetizaria dizendo que cresceu o que podemos chamar propriamente de espiritualidade, que se resume bem na injunção de Cristo para amar o próximo. Eu espero que o próximo Papa siga essa trilha, ainda mais num tempo em que o ódio é alimentado o tempo todo por influencers de toda ordem (ou, como diria Emmanuel Mounier, fundador da revista Esprit e forte referência do existencialismo cristão, de toda desordem).
Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC
Veja as notas do Especial da Semana – Francisco e a ciência
JC Notícias – “Papa Francisco foi fundamental para uma abordagem integrada entre ciência, ética e política”, diz Paulo Artaxo
Climainfo – Morre Francisco, o “Papa Verde”
Folha de S. Paulo – Francisco, o papa que entendeu a ciência
Rafael Revadam – Jornal da Ciência, 18/03/2024, com informações do Ministério do Povos Indígenas e do portal Vatican News – SBPC integrou evento no Vaticano sobre a união de conhecimentos indígenas e científicos para a preservação climática e ambiental preservação ambiental
Vatican News – Von Braun: da sabedoria indígena, uma contribuição extraordinária à área da saúde.
Vatican News – Conferência sobre os povos indígenas no Vaticano: “é hora de interagir, não interferir”
((O)) ECO, 21/04/2025 – Francisco, o papa defensor do meio ambiente e do equilíbrio climático
El País, 23/04/2025 – Francis, the pontiff who embraced scientific evidence on climate change and put the environment at the center
Agência Pública, 21/04/2025 – Papa nos colocou um imperativo moral: precisamos cuidar da nossa casa comum
IstoÉ, 21/04/2025 – Papa Francisco publicou primeira encíclica sobre mudanças climáticas
Folha de S. Paulo, 22/04/2025 – Papa Francisco ajudou a inspirar movimento global contra mudanças climáticas
Superinteressante, 22/04/2025 – O que é encíclica Laudato si’, deixada pelo Papa Francisco
Carta Capital, 21/04/2025 – Papa Francisco, um ativista da luta contra as mudanças climáticas
Observatório do Clima, 21/04/202 – O legado ambientalista de Francisco
Observatório do Clima, 18/06/2015- Entenda ponto a ponto a encíclica “Laudato Si”, do papa Francisco
Vaticano News – Papa em apelo ao meio ambiente: Deus deu um jardim, não deixemos um deserto aos filhos
CNN Brasil, 30/08/2024 – Papa Francisco diz que Terra está “doente” em novo alerta sobre crise climática
The Guardian, 22/04/2025 – Papa Francisco é aclamado como “campeão global inabalável” na crise climática
Agência Gov, 21/04/2025 – Defesa da ‘Ecologia Integral’ pelo papa Francisco inspirou o Acordo de Paris
Terra, 24/04/2025 – Da visita à Amazônia à “ecologia integral”, como o papa Francisco impulsionou a preservação do planeta
CNN Brasil, 21/04/2025 – Papa Francisco deixa legado de defesa do meio ambiente
Vaticano News, 05/06/2023 – O Papa: é necessária uma mudança decisiva no atual modelo de consumo e produção
Vatican News, 20/06/2024 – O Papa: a fé e a ciência podem se unir na caridade
Vatican News, 10/09/2022- Pope to Pontifical Academy: ‘Science is a tool for peace’
Correio Braziliense, 08/03/2025 – Papa nomeou especialista em IA para a Pontifícia Academia das Ciências
Expresso – Papa pede multilateralismo e respeito pela ciência contra desregulamentação neoliberal
Brasil de Fato, 22/04/2025 – Papa Francisco e a querida Amazônia
G1, 21/04/2025 – Integrante da Academia de Ciências do Vaticano relembra encontros com papa Francisco: ‘um líder’
Giovana Girardi – Agência Pública, 22/04/2025 – Papa nos colocou um imperativo moral: precisamos cuidar da nossa casa comum