Danilo faleceu em 29 de outubro de 2023, aos oitenta anos. Guedes deixou este mundo em 16 de abril de 2024. Está completando um ano dessa data, e ele será homenageado esta semana na Santa Casa, nos dias 14 e 16. A ambos, nosso respeito e gratidão.
Digamos que há duas formas principais de conceber a saúde. Uma delas consiste em tratar doenças implantadas, que já afetam as pessoas. A outra consiste em preveni-las, evitando que elas surjam. A primeira maneira está talvez mais associada à maneira como grande parte da população vê o trabalho do médico. A segunda envolve muito mais profissionais e tem um aspecto preventivo, exigindo a adoção de políticas públicas que se tornam cada vez mais importantes, uma vez que reduzem o problema antes mesmo de ele se manifestar. Notemos que o tratamento de esgoto, que é realizado por profissionais de fora da área da saúde propriamente dita, contribuiu muito para a queda da mortalidade, infantil ou não, nas últimas décadas.
A área da saúde pública cresceu ao longo do século XX, na mesma medida em que aumentava a expectativa de vida das pessoas. Inúmeros são aqueles que estudam esse aumento da esperança de vida dos seres humanos, inclusive fora da área de saúde. Não por acaso, Danilo Miranda se inspirou nos trabalhos do sociólogo italiano, Domenico De Masi, criador do conceito de ócio criativo. Não deveria haver dúvida de que o aumento da expectativa de vida é algo positivo.
É preocupante – porém – que a maior parte da discussão a respeito se dê no sentido de chamar esse aumento de “envelhecimento” (eu prefiro falar em alongamento da vida) e colocá-lo como um problema, e não como uma conquista humana das mais importantes. Ao colocá-lo como problema, a mídia e o empresariado focam no financiamento da previdência social, e assim, o que é uma enorme conquista dos últimos 100 anos passa a constituir algo que nos preocupa, em vez de algo que deveria nos alegrar. Evidentemente, há uma conta a pagar quando aumenta o número de anos que uma pessoa vive, mas essa é uma conta paga por algo muito bom. Deveríamos começar celebrando esse algo muito bom e só depois perguntar como ele será financiado.
Uma das conquistas do século XX é o que chamamos de aposentadoria. Já existia anteriormente, mas em uma dimensão muito menor. Basta lembrar que a CLT — Consolidação das Leis do Trabalho — foi promulgada em 1943, reunindo, como o próprio nome indica, vários diplomas legais que a precederam, mas dando-lhes mais foco e vigor. Em 1940, a expectativa de vida ao nascer no Brasil era de 45,5 anos, sendo 42,9 anos para homens e 48,3 anos para mulheres, uma diferença de 5,4 anos em favor das mulheres. Já a legislação vigente na época previa idades diferentes para a aposentadoria conforme o regime de trabalho e o sexo do trabalhador. Ou seja, estatisticamente, quem não se aposentasse por tempo de serviço morria antes de fazer jus à aposentadoria por idade. Isso, aliás, gerou superávits nos institutos de aposentadoria e pensões (como eram chamados no Brasil antes de serem fundidos no Instituto Nacional da Previdência Social — depois integrado no Instituto Nacional do Seguro Social, INSS). Um deles, por sinal, financiou a construção da ponte Rio-Niterói. Assim, dinheiro que era dos trabalhadores para sua aposentadoria foi desviado para outras finalidades, cuja qualidade não contestamos, mas que deveriam ter sido financiadas por impostos, e não subtraídas do que estava previsto para os trabalhadores que chegassem até a data da aposentadoria.
Assim, justamente quando os trabalhadores começaram a desfrutar da aposentadoria, começou a se vender a tese de que a previdência social deveria ser autossustentável – omitindo-se que, durante anos, ela gerara superávits, que foram subtraídos deles! Mas, de todo modo, celebremos o fato de que pela primeira vez na história humana se tornou possível que multidões de pessoas, inclusive os mais pobres, possam viver após cessarem seu trabalho remunerado. Isso determina a necessidade de que tenham saúde, física e mental, e de que encontrem sentido em suas vidas.
Evidentemente, o legado de Danilo Miranda e do Dr. José da Silva Guedes não se reduz ao bem-estar dos aposentados, mas ele ilustra bem a importância do que fizeram ambos. É bom lembrar que o Sesc de São Paulo tem neles um foco importante, e que programas como o Agita São Paulo, embora envolvam pessoas desde uma idade mais jovem, promovem justamente uma qualidade de vida mais duradoura para todos. Neste momento, é de alta importância juntar todas essas questões. É importante considerar a expectativa de vida. Aliás, lembrem os leitores desta newsletter da SBPC que, em bom número, vocês são pessoas que, estatisticamente, já teriam falecido um século atrás, quando a expectativa de vida estava em torno de 40 anos. Mesmo os mais jovens dos nossos associados — aqueles que estão ingressando no ensino superior — estariam já na metade da vida, e não no começo de sua vida ativa e profissional.
Essas são conquistas muito grandes, que exigem de nossa parte celebração e gratidão. Mais que isso: devemos dar continuidade a esse legado importante de dois grandes brasileiros, promovendo o crescimento da atividade física não competitiva. Insisto nesse elemento do não competitivo. Esse ponto ficou claro para mim pessoalmente quando fui convidado, por volta de 2012, para fazer a conferência de abertura do programa Move Brasil, durante uma conferência mundial que se realizou em São Paulo. Ana Paula Vicentin, funcionária do Sesc que me convidou, explicou que o Sesc não patrocinava atividades físicas competitivas. Esse investimento não era considerado importante, pois o objetivo era melhorar a qualidade de vida da pessoa, e não incentivar a competição [1].
Temos aqui uma opção fundamental em termos educacionais e civilizatórios. Um dos problemas que vivemos hoje é o excesso de competição. No ano passado, um dos candidatos a prefeito em São Paulo conseguiu um número expressivo de intenções de voto justamente por pregar uma vida competitiva e predatória. A competição, embora necessária numa sociedade capitalista, pode se tornar predatória, destrutiva. Sua vantagem — de promover o triunfo das melhores práticas e profissionais — é sacrificada quando destrói as relações sociais, instaurando a guerra de todos contra todos de que falava Thomas Hobbes.
Por isso mesmo, entendo que desde cedo a educação deva se focar na cooperação mais do que na competição. Brincadeiras em creches deveriam insistir nesse elemento cooperativo. Dou um exemplo: o futebol é, por definição, competitivo, pois coloca duas equipes uma contra a outra. Mas essa competição só faz sentido a partir da cooperação dentro de cada time. É porque os jogadores tocam a bola entre si e se ajudam que o jogo acontece. O time que coopera melhor geralmente ganha. Nesse sentido, devemos focar na cooperação muito mais do que na competição.
Acrescento outro ponto. Quando fui ministro da Educação, em 2015, recebi uma visita gentil do então titular da pasta dos Esportes, George Hilton. Fiquei sabendo que o Ministério dos Esportes tinha três secretarias: uma dedicada ao futebol, o esporte mais popular do país; outra aos esportes de alto rendimento; e uma terceira que cobria a atividade física dos 200 milhões de brasileiros. Vemos, então, a diferença de escala: no futebol, temos alguns milhares de jogadores e técnicos; nos esportes de alto rendimento, talvez mais alguns milhares. Porém, dois terços do Ministério se dedicavam ao esporte profissionalizado, envolvido com dinheiro, lucro e espetáculo — ou seja, entretenimento — enquanto apenas um terço cuidava de mais de 95% da população.
Isso gera um descompasso de prioridades. A prioridade deveria ser, como quiseram Danilo e Guedes, a atividade física não competitiva, voltada a todos. Devemos pensar na preservação e valorização do tecido social. A ideia de sociedade como um corpo é antiga: gregos e romanos já viam o Estado como corpo político ou corpo social. Como todo corpo, ele pode ter saúde ou adoecer, e até morrer. Mesmo o conceito de corrupção tem origem nessa analogia — corrupção como apodrecimento do corpo, causado por doenças e, com a morte, devorado por bactérias.
Para termos saúde na sociedade, é preciso enfrentar e evitar sua morte — ou seja, sua deterioração e corrupção. Um corpo é um tecido — metáfora antiga — e as relações sociais são as tramas que compõem esse tecido: os vínculos, as formas de costurar o convívio humano. Todos esses valores supõem a cooperação muito mais que a competição. A competição deve ser entendida como meio, nunca como fim. O fim das relações humanas deve ser vinculado à cooperação, às paixões positivas celebradas por Espinosa: amizade, amor — afetos que constroem. As paixões negativas — ódio, raiva, antagonismo — podem funcionar para a competição, mas devem estar subordinadas a um fim maior: os laços sociais.
No momento atual, diante do avanço do que é destrutivo e disruptivo, é mais do que nunca importante apostarmos nos vínculos sociais. O cuidado com a saúde pública ou coletiva faz parte dessa aposta.
Renato Janine Ribeiro – presidente da SBPC
Veja abaixo as notas do Especial da Semana – Cidades saudáveis
JC – Sem apoio estadual e federal, Agita São Paulo sobrevive da parceria com municípios
JC Notícias – Substituir o espetáculo pela atividade física
JC Notícias – Exercício físico nas nossas cidades
José Carlos Simon Farah – Jornal da USP, 11/02/2025 – Redução do sedentarismo faz parte agora das preocupações do SUS
Agência Gov, 31/08/2024 – Caminhos para aumentar a prática de atividades físicas pela população
Saúde, 06/04/2024 – 60% dos brasileiros não fazem atividade física
Agência Câmara de Notícias, 27/01/2025 – Comissão aprova projeto que institui programa de atividade física no SUS
Brasil de Fato, 09/04/2025 – SUS pode ajudar contra o sedentarismo, mas Brasil ainda carece de política nacional
Infomoney,25/03/2025 – O impacto financeiro do sedentarismo: quanto o Brasil perde com a inatividade física
Terra, 08/04/2025 – Exercício físico é essencial para um envelhecimento saudável
Veja Saúde, 27/01/2025 – Ranking revela as capitais mais ativas e sedentárias do Brasil
Umane, 07/04/2025 – Dia Mundial da Saúde: longevidade e qualidade de vida estão avançando juntas no Brasil?
Francielly Barbosa – Agência Brasil – Exercícios físicos ajudam a prevenir, tratar e se recuperar de câncer
Opas, 26/06/2024 – Cerca de 1,8 bilhão de adultos correm o risco de adoecer devido à falta de atividade física
Umane, 22/07/2024 – Os benefícios da atividade física e do esporte no dia a dia
Agência Gov, 10/03/2025 – Conheça as práticas para reduzir o comportamento sedentário disponíveis no SUS
Revista do Sesc, maio/2024 – Sesc traz artigos que refletem sobre as relações entre ambiente, atividade física e saúde
[1] Desenvolvi este ponto em artigo de 8 de dezembro de 2014, incluído em meu livro O valor volta à política, que aparece à parte neste Especial.