EDITORIAL: Somos soberanos

“Cabe a nós, brasileiros, lutarmos por políticas públicas que criem condições para que a ciência, a tecnologia e, acima de tudo, nossa soberania, se blindem contra pressões alheias aos interesses do país”, escreve a presidente da SBPC, Francilene Procópio Garcia, para a editoria especial do JC Notícias desta sexta-feira

whatsapp-image-2025-08-01-at-15-13-41Mesmo tirando de sua lista cerca de 700 itens, o presidente do Estados Unidos, Donald Trump, deu prosseguimento às suas ameaças ao Brasil e publicou, no dia 30 de julho, o decreto que concretiza a imposição de tarifas de 50% sobre produtos brasileiros – condicionando sua retirada ao alinhamento político de Brasília com Washington. Com essa medida, Trump reescreve um roteiro que a história da América Latina conhece bem: o da potência que, sob o argumento de “defender a democracia” e “proteger seus cidadãos”, impõe tarifas, sanções e exigências que ferem a autonomia de nações soberanas.

Se antes o alvo era o ouro, o açúcar ou a borracha, agora são os setores digitais e tecnológicos. Na mira do mercado norte-americano, destaca-se o sistema Pix, criado pelo Banco Central do Brasil como infraestrutura pública de pagamentos instantâneos. A investigação conduzida pelo Escritório do Representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR) apontou interesses em substituir soluções públicas brasileiras por plataformas privadas estrangeiras, deslocando parte da soberania digital e financeira do país.

A descrição desse padrão, a subordinação externa mascarada por promessas de progresso, que se repete sob diferentes formatos, foi diagnosticada pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano, em “As Veias Abertas da América Latina”. A obra, publicada em 1971, examinou como nossos ciclos econômicos — da prata de Potosí ao ouro brasileiro, do açúcar caribenho à borracha amazônica — geraram prosperidade para potências estrangeiras e elites locais, deixando, em contrapartida, passivos ambientais, dependência produtiva e fragilidade estrutural. Galeano observou que o problema não era ausência de desenvolvimento, mas sim a forma como ele se organizava: subordinado e voltado para fora.

O colonialismo formal cedeu lugar a novas formas de dependência, econômicas e tecnológicas, sustentadas por tecnologias proprietárias, controle de dados, algoritmos e regras de mercado. Dívidas, tratados desiguais e a apropriação de tecnologias passaram a cumprir papel equivalente ao das antigas metrópoles. A América Latina, “de costas para si mesma e de frente para o império”, segue presa a estruturas vulneráveis.

No Brasil, a autonomia tecnológica é um direito constitucional. O artigo 219 da Constituição Federal de 1988 estabelece que “O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País”. Essa conquista foi resultado direto da mobilização da comunidade científica, liderada pela SBPC e por entidades acadêmicas que lutaram por um capítulo específico sobre Ciência e Tecnologia na Carta Magna.

A soberania digital, conceito hoje central, não se resume ao controle de redes e dados. Ela envolve a capacidade de compreender, desenvolver, regulamentar e decidir sobre as tecnologias que moldam nossa vida econômica, social e política. Iniciativas como o dWallet, que propõe devolver o controle e a monetização dos dados pessoais aos cidadãos, e a regulação de plataformas digitais discutidas no Congresso (como o PL 2.630/2020) integram uma agenda que busca reduzir vulnerabilidades externas e ampliar a capacidade de autodeterminação tecnológica.

A soberania digital também se conecta a recursos físicos estratégicos. O Brasil possui a segunda maior reserva de terras-raras do planeta, insumos essenciais para tecnologias de energia limpa e eletrônicos de ponta. Ainda assim, a produção nacional permanece limitada por deficiências tecnológicas, o que coloca o país em uma posição frágil, dependente de importações de alto valor agregado.

Durante a 77ª Reunião Anual da SBPC, em julho, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) divulgaram a carta “Em defesa da soberania nacional, da democracia e dos interesses científicos e econômicos do Brasil”. No documento, que foi apresentado aos mais de 40 mil participantes do evento, afirmamos que as ações do governo dos Estados Unidos “configuram uma afronta inaceitável à soberania nacional, à democracia brasileira e à estabilidade das relações internacionais”.

Duas semanas depois, quando foi publicado o decreto da Casa Branca, a SBPC e a ABC imediatamente reiteraram seu protesto aos ataques desmedidos e registraram repúdio às sanções unilaterais impostas pelo governo dos Estados Unidos ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, com base na “Lei Magnitsky”. Uma inadmissível ingerência em assuntos internos e uma violação da independência do Poder Judiciário brasileiro.

O Brasil resistiu, e resiste. Enfrentamos cortes orçamentários, tentativas de deslegitimar nossas universidades e campanhas anticientíficas promovidas por um governante que hoje se alinha, covardemente, aos desmandos estadunidenses. E vemos os Estados Unidos viverem, agora, uma tormenta semelhante à que passamos, em que ciência, diversidade e pensamento crítico se tornam inimigos declarados do governo.

O Brasil tem aprendido, a duras penas, sua lição: soberania não se negocia, e ciência não se curva a interesses alheios ao bem público. Porém, é preciso sempre reforçar que a defesa da soberania nacional, seja na economia física ou no ambiente digital, exige investimento contínuo em ciência, tecnologia e inovação.

As “veias abertas” a que se referiu Eduardo Galeano continuam expostas, não mais pela mineração ou pela monocultura, mas pela dependência tecnológica, financeira e informacional. A tarefa do Brasil é criar as condições para que essas veias deixem de ser canais de escoamento e passem a ser caminhos para fortalecimento e autonomia nacional. Cabe a nós, brasileiros, lutarmos por políticas públicas que criem condições para que a ciência, a tecnologia e, acima de tudo, nossa soberania, se blindem contra pressões alheias aos interesses do país.

Francilene Procópio Garcia, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

Veja as notas do Especial da Semana – Soberania digital

Jornal da Ciência – Brasil só terá soberania nacional quando tiver a independência de seus dados

Agência Brasil – Lula: Brasil é soberano e interferência dos EUA é inaceitável

UOL – Estamos preocupados, mas não com medo, diz Lula sobre tarifaço ao New York Times

Migalhas, 25/07/2025 – Soberania: entenda significado e riscos já enfrentados pelo Brasil

Rede pela Soberania Digital, 23/07/2025 – Rede pela Soberania Digital divulga carta ao presidente Lula

Carta Capital, 24/07/2025 – Oportunidade única

PapodeDev, 02/06/2025 – Projeto pioneiro no Brasil permitirá que cidadãos lucrem com seus dados pessoais

Rest of Word: Pela primeira vez no mundo, brasileiros poderão em breve vender seus dados digitais

Época Negócios: DrumWave apresenta sua carteira digital para monetização de dados; saiba como vai funcionar

Fóru – Internacionalização do Pix – uma oportunidade para o Brasil

Nexo, 26/07/2025 – Por que a ação dos EUA contra o Pix interessa às big techs

Agência Softex, 28/07/2025 – Whitepaper da Softex sugere reposicionamento estratégico do setor de TIC frente à ofensiva tarifária dos EUA

Jota, 29/07/2025 – Quatro PLs em busca da soberania digital

Brasil de Fato, 22/07/2025 – Pesquisador da FGV: big techs operam no Brasil ‘à margem da lei’ e sem pagar impostos

Getip.net – Contratos, Códigos e Controle: A Influência das Big Techs no Estado Brasileiro

MCTI, 25/06/2025 – BRICS defende protagonismo do Sul Global nas novas tecnologias e inovações

Opera Mundi – Países do BRICS defendem autonomia e soberania sobre big techs

Jota, 26/02/2025 – Da soberania digital à soberania em IA

Nexo, 24/02/2025 – Soberania ou subordinação? Brasil e os rumos da IA

Instituto Humanitas Unisinos – O Brasil sob cerco digital. Retaliações econômicas, big techs e o enfraquecimento da soberania nacional

*desinformante – Tarifaço no Brasil: O grande experimento de Trump

Jornal da Unesp – Trump ameaça o Brasil com taxas para mostrar ao mundo como as big techs devem ser tratadas, afirma professor da Unesp