EDITORIAL: Vacinas, avanços e resistências

“Ciência não sobrevive sem financiamento contínuo. E o conhecimento não se converte em confiança pública sem uma mediação ética, acessível e tecnicamente qualificada”, escreve Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, para a editoria especial do JC Notícias desta sexta-feira

WhatsApp Image 2025-05-09 at 13.39.38 (1)A história da vacinação no Brasil é uma das maiores vitórias da saúde pública. Desde a criação do Programa Nacional de Imunizações (PNI), em 1973, o país construiu um dos sistemas mais robustos e equitativos do mundo, responsável por eliminar doenças como a poliomielite, o tétano neonatal e, por um bom período, o sarampo. Mas o que parecia um triunfo histórico consolidado revelou-se mais vulnerável do que se supunha diante de um inimigo insidioso: a desinformação, que se disseminou como pólvora na era das redes sociais e da necropolítica.

As campanhas antivacina, movidas por interesses políticos, econômicos e ideológicos, ganharam vulto durante a pandemia de covid-19 e continuaram a se expandir no vácuo de confiança deixado pela política da desinformação do governo anterior. Nas redes sociais, prosperaram sob a lógica da pós-verdade, em que emoções se sobrepõem a evidências. Disfarçadas de “liberdade de escolha”, essas narrativas tornaram-se dispositivos lucrativos que fragilizam a cultura científica e comprometem os avanços da saúde pública. Grupos organizados operam como verdadeiros negócios de desinformação, minando a confiança da população na ciência e nos serviços públicos de saúde.

Esse fenômeno, contudo, não é novo. Quando Edward Jenner desenvolveu a vacina contra a varíola, no final do século XVIII, na Inglaterra, o mundo conheceu não apenas a primeira imunização moderna, mas também os primeiros movimentos antivacina (vale lembrar, contudo, que essa prática já existia no Império Otomano, ensinada por mulheres turcas — como observou Lady Mary Wortley Montagu, em 1717 — e foi apenas mais tarde sistematizada por Jenner, que acabou recebendo os louros). Na época, opositores protestavam por razões religiosas e temiam os efeitos colaterais de uma tecnologia que viria a salvar milhões de vidas. Ainda hoje, devemos a Jenner e à vacinação em massa um dos maiores aumentos da expectativa de vida da humanidade. O que mudou foi a escala: com o descrédito crescente das fontes confiáveis de informação e, ao mesmo tempo, a força dos algoritmos, o movimento antivacina adquiriu uma capilaridade e um poder de influência sem precedentes.

Como desenvolvi em meu livro Duas ideias filosóficas e a pandemia, para termos real noção da importância da vacinação, é preciso comparar três epidemias de grande magnitude. A peste negra, que assolou a Eurásia no século XIV, ceifou entre um terço e metade das populações afetadas. Projetada para a população atual, essa taxa significaria a morte de 2,7 a 4 bilhões de pessoas. A gripe chamada espanhola, há pouco mais de um século, matou entre 3% e 5% da população mundial — o que hoje corresponderia a 240 a 400 milhões de vidas. Já a covid-19, embora tenha causado enorme sofrimento, levou cerca de 7 milhões de pessoas, menos de um milésimo da população global. Ou seja, pandemias em contextos com pouco ou nenhum avanço científico geraram perdas humanas incalculáveis, além de transformações sociais prolongadas. Foi graças à ciência que, em menos de um ano, conseguimos desenvolver vacinas — inclusive com tecnologias modernas — e conter a pandemia. Isso nos dá esperança: uma nova crise sanitária global pode ser enfrentada com mais rapidez, desde que valorizemos o papel fundamental da ciência em antecipar, prevenir e resolver os grandes desafios que nos ameaçam.

O Brasil, porém, tem reagido. Iniciativas como o retorno do Zé Gotinha, a mobilização em escolas, comunidades religiosas e até estádios de futebol mostram que a imunização precisa ser também um projeto cultural e simbólico. Há esforços vigorosos para recuperar coberturas vacinais, com destaque à estratégia de microplanejamento do PNI, que atende às especificidades regionais. Mas o desafio permanece: reverter a desconfiança exige mais do que campanhas — requer um pacto político e social pela ciência e pela vida. Vacinar-se é, afinal, um compromisso coletivo.

Ao mesmo tempo, o país avança na direção de sua soberania sanitária. A produção nacional de vacinas contra a dengue, a gripe aviária e o vírus sincicial respiratório, por exemplo, além da integração da Fiocruz à coalizão global de fabricantes do Sul Global, marcam uma virada estratégica. Com investimento consistente em pesquisa, infraestrutura e tecnologia, o Brasil tem dado passos consistentes para conquistar sua autonomia frente a futuras crises sanitárias.

Ainda assim, é necessário um alerta. Esta edição especial do JC Notícias propõe este debate num momento particularmente sensível: em meio à recente mudança na direção do Ministério da Saúde e à ausência da área da Saúde entre os programas estruturantes e mobilizadores do Plano Anual de Investimento (PAI) do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Como destacamos em conversa com a secretária de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde, Ana Estela Haddad, durante visita à sede da SBPC há cerca de um mês, dos dez programas propostos para ciência, tecnologia e inovação, nenhum é dedicado diretamente à saúde. A exclusão do setor de uma agenda estratégica de CT&I é um contrassenso que compromete a capacidade de resposta do país diante de futuras crises sanitárias.

Ciência não sobrevive sem financiamento contínuo. E o conhecimento não se converte em confiança pública sem uma mediação ética, acessível e tecnicamente qualificada. Precisamos reconstruir a cultura vacinal, fortalecer a rede de profissionais de saúde, responsabilizar propagadores de desinformação e garantir a presença do Estado em todos os territórios — com seringas, vacinas e comunicação pública eficiente.

O Brasil já mostrou ao mundo do que é capaz. Agora, cabe a nós decidirmos se seremos exemplo de um futuro tecnológico, bem-informado e soberano, ou palco do retrocesso financiado pelos mercadores da dúvida.

A escolha está em nossas mãos — e no nosso braço.

Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)

 

Veja as notas do Especial da Semana – Vacinas 

The Conversation Brasil – Quando desinformação gera lucro: como comunidades conspiracionistas monetizam com o movimento antivacina

Folha de S. Paulo, 26/04/2025 – Movimento antivax surgiu com a própria vacina, em 1796, e ganhou força na pandemia da covid

Agência Brasil, 04/04/2025 – Movimentos negacionistas são desafio da imunização, diz Padilha

Agência Pública, 08/03/2025 – Vencemos a covid, mas movimento antivacina é um problema hoje, diz Margareth Dalcolmo

Futura da Saúde, 25/03/2025- “As pessoas recorrem a qualquer explicação para suas suspeitas sobre vacinas”, diz Huseyin Koytak, da Universidade do Mississippi

Estadão, 08/04/2025 – Como a desinformação sobre vacinas distorce dados e compromete a confiança pública

Folha de S. Paulo, 06/05/2025 – Antivacina, crítico a ultraprocessados e a favor do leite cru, conheça o movimento MAHA, dos EUA

Folha de S. Paulo – A banalidade do mal dos antivacinação

O Globo, 16/02/2025 – O mundo sinistro dos antivacina

O Globo, 09/06/2024 – “Conseguimos interromper uma tendência de queda das coberturas”, diz diretor do Programa Nacional de Imunizações

G1, 16/06/2024 – Vacinação é essencial para evitar a volta de doenças, como pólio e sarampo; veja como estão os índices de imunização em 2024

Jornal da USP, 26/03/2024 – Negativismo às políticas de imunização se reflete no retorno de doenças extintas

Rádio Nacional*, 07/04/2025 – Butantan desenvolve primeira vacina brasileira contra gripe aviária

MCTI, 25/02/2025 – Brasil avança na produção nacional de vacinas e insulina com acordos estratégicos

O Globo, 09/06/2025 – As 5 principais novidades sobre vacinas nos últimos anos – e o que esperar para o futuro

Agência Gov, 29/07/2024 – Fiocruz passa a integrar coalizão mundial de desenvolvedores de vacinas

Olhar Digital, 07/04/2025 – Pesquisa brasileira mostra caminho para aprimorar vacinas contra a covid