Em apenas dois dias e sem nenhum debate, deputados e senadores aprovaram o Projeto de Lei do Congresso Nacional (PLN) n° 17, de 2022, que permitirá ao governo desrespeitar as leis vigentes e bloquear os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). A proposta foi enviada pelo governo federal na segunda-feira, 4, e teve seu despacho para tramitação na quarta, 6. No mesmo dia 6, o relator foi designado, apresentou seu parecer e a Comissão Mista de Orçamento (CMO) aprovou o texto. Uma tramitação fora do normal para qualquer PLN.
O texto aprovado não passou por nenhum debate, ainda que tenha sido alvo de uma emenda da deputada Angela Amin (PP/SC) buscando retirar do projeto o trecho que fragiliza o orçamento do FNDCT. O relator, deputado Carlos Henrique Gaguim (UNIÃO/TO), deu parecer favorável ao PLN alegando que, apesar da perspectiva de não liberação do Fundo neste ano, os recursos estariam carimbados e serão aplicados na ciência “ainda que em exercício diverso daquele em que ocorrer o ingresso”. Ou seja, mesmo que não fosse liberado neste ano, o dinheiro acumularia para os próximos, segundo uma salvaguarda da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). “Diante dessa salvaguarda, não vemos óbice à aprovação da proposição”, declarou Gaguim no relatório. Esta salvaguarda na LRF, no entanto, não assegurou que os recursos bloqueados do FNDCT em anos anteriores retornassem ao fundo.
A proposta aprovada na CMO ataca a programação orçamentária do FNDCT em três níveis. Primeiro, assegura que não é ilegal o governo federal reduzir as dotações do fundo ao longo de 2022. Depois, estabelece que não é preciso abrir créditos adicionais para incorporar ao orçamento eventual excesso de arrecadação ou superávit do fundo. Na prática, permitirá que o governo se aproprie de recursos do FNDCT não contabilizados na Lei Orçamentária Anual (LOA). E, por fim, permite à equipe econômica ignorar os percentuais estabelecidos em lei para distribuição do fundo em recursos reembolsáveis e não reembolsáveis. Hoje, o FNDCT é divido meio a meio entre créditos para empresas e financiamento de projetos a fundo perdido.
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), tão logo teve conhecimento do teor do PLN, denunciou a manobra da equipe econômica para se apropriar dos recursos do FNDCT. Em nota, apoiada pelas entidades que compõem a Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), a SBPC fez um histórico dos ataques contra o fundo realizados pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, que reiteradamente tem obstruído a liberação dos recursos de CT&I. Em 2021, também lançando mão de um PLN, a equipe econômica já havia alterado a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para impedir a liberação plena do FNDCT.
Todos estes dispositivos apresentados agora na nova proposta chocam-se frontalmente com a Lei Complementar n° 177, de 2021. Aprovada com grande apoio no Congresso Nacional no ano passado, esta lei tem como objetivo justamente proteger o FNDCT da redução das dotações. A LCP 177/2021 incluiu na Lei do FNDCT (Lei 11.540/2007) impedimento a qualquer tipo de contingenciamento de verbas, para assegurar que a totalidade dos valores arrecadados sejam liberados para financiar os projetos de CT&I.
Em nota técnica emitida para instruir o PLN n° 17, a consultoria do Senado Federal foi clara em apontar a potencial ilegalidade da proposta. “Então, é imperioso destacar que a Lei n° 11.540/2007 não admite a adoção de qualquer procedimento que vise impedir a execução integral das despesas autorizadas no âmbito do FNDCT. Além disso, a lei de diretrizes orçamentárias não tem o condão de alterar essa ‘obrigatoriedade de execução’, uma vez que se encontra determinada na lei específica do referido fundo. De fato, suas despesas, em virtude do exposto sobre as disposições da referida lei, ultrapassam a fronteira de gastos discricionários, não podendo ser constrangidos sequer com vistas ao cumprimento do teto de gastos da União, estabelecido por meio do art. 107 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”, concluem os consultores.
Ainda não está definida a data da sessão no Congresso Nacional que irá analisar o PLN n° 17. A comunidade científica tem pedido aos parlamentares que, não apenas sejam contrários à proposta, mas tomem providências para revisar a LCP n° 177/2021 para torná-la impermeável a estas investidas da equipe econômica. Ações desse tipo têm passado no Congresso porque a LCP 177 possui um artigo que autoriza que qualquer lei posterior possa alterá-la sem a necessidade de substituí-la. Com isso, a equipe econômica tem se valido das mudanças da LDO para descumprir a lei em vigor.
Mariana Mazza – Especial para o JC