Em busca do imunizante verde-amarelo

Há hoje 17 vacinas nacionais em desenvolvimento utilizando tecnologias inovadoras e também convencionais, conheça algumas delas. Confira a reportagem da nova edição especial do Jornal da Ciência
vacina verde-amarela
Foto: Paulo Shoeler/Fiocruz

Desde 2005, a equipe do professor titular de Imunologia Celio Lopes Silva, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), vinha trabalhando no desenvolvimento de plataformas de vacinas em parceria com a empresa startup Farmacore Biotecnologia.

O objetivo era obter imunizantes preventivos e terapêuticos para doenças infecciosas, câncer e alergia, que oferecessem uma ativação robusta da imunidade e controle das doenças.

Um dos alvos, naquela época, era a tuberculose e, mais recentemente, foi otimizada uma tecnologia para essa doença, utilizando um sistema carreador de vacinas, desenvolvido pela empresa PDS Biotech, dos EUA, que apresenta grande potencial para ativação de todo sistema imunológico. Quando a pandemia do novo coronavírus chegou em 2020, as equipes da FMRP e da Farmacore perceberam a grande oportunidade: a conversão da plataforma, da tuberculose para a covid-19.

Assim nasceu a Versamune MCTI, uma das 17 vacinas em desenvolvimento hoje no Brasil por cientistas e tecnologia nacionais. Há um grande esforço para que elas cheguem logo aos braços dos brasileiros, mas poucas conseguirão antes de 2022.

A mais avançada nesse sentido é a ButanVac, que está sendo feita pelo Instituto Butantan. A tecnologia do imunizante utiliza o vírus da Doença de Newcastle, uma infecção que afeta aves. Por esta razão, o vírus se desenvolve em ovos embrionados, uma técnica descoberta por pesquisadores norte-americanos. A ButanVac já passou por testes pré-clínicos em animais e aguarda autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para as fases 1 e 2 dos ensaios clínicos, que deverão ter a participação de 1.800 voluntários.

Além de produzir o Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) da vacina de Oxford/AstraZeneca, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) tem outros seis projetos em desenvolvimento com diversos parceiros, nacionais e estrangeiros. A fundação promete entregar, ainda este ano, uma vacina produzida totalmente no Brasil, com a fabricação dos primeiros lotes do IFA no segundo semestre.

Consórcio

A possibilidade de conversão da plataforma da Versamune era a ideia desde o começo, relata Lopes Silva, quando a equipe se associou à Farmacore, hoje líder do consórcio que envolve o Laboratório de Pesquisa e Desenvolvimento de Imunobiológicos da FMRP e a PDS Biotech. A parceria resultou em diversos produtos na área veterinária, que já estão em fase final de testes clínicos.

“Muitas empresas e academias têm uma interação bastante grande para desenvolver vacinas, usando plataformas tecnológicas que estavam sendo usadas para outras infecções, para outras patogenias, exemplo típico é a de Oxford com a AstraZeneca”, comentou Lopes.

Sob a marca Versamune MCTI, o projeto do consórcio tem como estratégia vacinal não só a indução rápida de anticorpos neutralizantes como também a ativação de células-T citotóxicas. A vacina estimula o sistema imune celular e ativa os linfócitos T CD8, além de gerar células de memória que reconhecem o vírus da covid-19, o SARS-CoV-2, por um longo período de tempo. Esses linfócitos têm a capacidade de reconhecer as células infectadas e eliminá-las. Nem todas as células do organismo estarão infectadas, portanto não ocorre falência dos órgãos.

O carreador é a alma da Versamune MCTI. Segundo Lopes, trata-se de um componente que leva para a célula a proteína pronta para ser reconhecida pelo sistema imunológico. “Pelo resultado pré-clínico que temos, esse carreador também estimula um dos componentes mais importantes para combater as infecções virais, que é a produção do interferon tipo 1”, definiu.

A história da PDS Biotech, fabricante e detentora da patente do carreador é muito parecida com a de muitas startups e farmacêuticas mais consolidadas nos EUA, na Europa e na Ásia. Ela trabalhava para encontrar uma droga imunoterápica para o câncer e adaptou a composição para atender ao combate à covid-19.

A conexão da PDS Biotech com a equipe de Lopes Silva se deu através da Farmacore. Helena Faccioli Lopes, co-Fundadora e CEO da empresa, diz que a plataforma foi pensada para acelerar o desenvolvimento das vacinas. “Nós conseguíamos levar o projeto da prova de conceito até o clinico, passando pelo pré-clínico, o desenvolvimento tecnológico, a produção de lote piloto, mesmo algumas coisas tendo sido executadas fora do País, por falta de estrutura aqui na época. Mas a gente quer que isso seja um processo comum no Brasil, agora, para gerar novas tecnologias aqui e enfrentar outras doenças”, afirmou.

Está a cargo da Farmacore buscar os parceiros privados nacionais para a produção industrial verticalizada de todas as fases da vacina e já submeteu à Anvisa o dossiê para ter anuência para início dos estudos clínicos no Brasil. O projeto recebeu R$ 3,8 milhões do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). A previsão é que o imunizante esteja disponível para a população brasileira no início de 2022, com eficácia semelhante à vacina da Pfizer, garante Lopes.

Quimera

Mais de 500 quilômetros distante de Ribeirão Preto, em Belo Horizonte, outra equipe batalha para trazer uma vacina nacional contra a covid-19, a do imunologista Ricardo Gazzinelli. Presidente da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Vacinas/MCTI, co-fundador do Centro de Tecnologia de Vacinas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com a Fundação Oswaldo Cruz MG (Fiocruz), Gazzinelli conta que, incialmente, sua equipe trabalhava com uma vacina bivalente para covid-19 e gripe. A estratégia por trás da vacina consiste na implantação de um gene de coronavírus em um vírus de influenza atenuado. Ao invadir as células humanas o resultado dessa junção teria uma dupla função, induzindo a produção de anticorpos contra o SARS-CoV2 e a própria influenza.

Além disso, como plataforma alternativa, construíram proteína quimera recombinante. “Nós selecionamos parte da Spike que foi fusionada com a proteína nucleocapsídeo (N) dos SARS-CoV-2, que é muito antigênica para linfócitos T. E aí, pela biologia molecular, juntamos as duas proteínas em uma única, a chamada proteína quimera”, relatou.

A expressão “quimera” designa uma proteína artificial híbrida, produzida a partir de diferentes proteínas dos vírus. Segundo ele, a quimera induz uma resposta de anticorpos e de linfócitos T, muito efetiva, inclusive contra as variantes do vírus. “Há realmente a tendência de o vírus mudar para escapar da resposta imune. Só que é muito difícil ele escapar da resposta de linfócitos”, completou.

Nos testes com animais, os resultados têm sido promissores, disse. “Nós fizemos testes no laboratório com camundongo transgênico, que é muito suscetível ao coronavírus, e enquanto 100% dos animais morriam com oito, nove dias de infecção, os vacinados foram totalmente protegidos, não apresentando sinais clínicos. Então, acho que o resultado foi muito bom”, afirmou Gazzinelli.

A nova vacina da UFMG deve iniciar testes entre agosto e setembro e a expectativa é que esteja pronta em 2022. O projeto está sendo realizado em parceria com o Instituto Butantan e o Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Recebeu R$ 3 milhões do MCTI, R$ 400 mil da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig) e outros R$ 400 mil da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “Temos recursos suficientes para produzir o lote piloto e chegar nos testes pré-clínicos de segurança. Mas para entrar nos estudos clínicos, aí nós vamos precisar de mais recursos”, afirmou.

Nanopartículas

Também em Minas Gerais, no Laboratório de Sistemas Nanoestruturados do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, o cientista Pedro Guimarães e sua equipe desenvolvem uma versão brasileira de vacina contra a covid-19 a partir da genética. Trata-se de uma plataforma tecnológica para vacina de DNA e RNA direcionada a doenças virais infecciosas, utilizando nanopartículas lipídicas ionizáveis.

Guimarães explica que o imunizante que sua equipe está desenvolvendo foca na “entrega de ácido nucleico” (DNA, RNA) até a célula por meio de nanopartículas. Trata-se da mesma técnica utilizada na vacina da Biontech e da Moderna. “É idêntico, a gente usa, basicamente, nanopartículas para carrear esse ácido nucleico”. Guimarães trouxe a técnica aprendida em laboratório do Massachussets Institute of Technology (MIT), em Boston, onde estudou e trabalhou até 2019, sob supervisão de um dos cofundadores da empresa Moderna, o cientista Robert Langer.

A associação de nanopartículas e genética otimiza o sistema da vacina de forma a aproveitar a mesma plataforma para tratar várias doenças. O RNA mensageiro (mRNA) produz uma parte do vírus que leva à imunidade. O diferencial é como levar o RNA para dentro das células, o que chamamos de sistema de entrega. “Quando você estabelece o sistema de entrega direcionado à uma célula ou tecido alvo, significa que eu posso fazer vacina para muitas doenças, só tenho que trocar a sequência do ácido nucleico”, explicou Guimarães.

A plataforma está em fase de testes pré-clínicos em animais que deve ir até o meio do ano, quando pretendem pedir autorização à Anvisa para prosseguir nas próximas etapas de testes.

“Sem CT&I, SUS tem pés de barro”

Não há outra saída para o Brasil na área de vacinas, se não a inovação. A afirmação é do economista Carlos Grabois Gadelha, coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pesquisador e o maior especialista do País no Complexo Industrial da Saúde.

Gadelha desmonta a imagem que tem sido divulgada, de um país incapaz de produzir imunizantes, dependente do fornecimento de outros países. Embora respaldada na realidade de cortes orçamentários que atingiram em cheio as principais instituições responsáveis pela produção brasileira, essa imagem não faz jus à capacidade produtiva do Brasil, única na América Latina, tanto de IFA quanto para o processamento final.

“Graças a 37 anos de políticas públicas, o Brasil não saiu do jogo das vacinas”, analisa. Na visão dele, no entanto, é preciso investir mais na inovação: “No século 20, conseguimos avançar com o PNI, que é de 1973, e está caminhando para seus 50 anos. Para que tenhamos mais 50 anos de sustentabilidade no século 21, não basta repetir o século 20, a gente vai ter que ser inovador.”

Organizador de um dos maiores estudos sobre o Complexo Industrial da Saúde (CIS), publicado em janeiro na revista Cadernos do Desenvolvimento, do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, Gadelha sustenta que a política de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) tem que ser articulada com a política industrial.

Ele alerta que, apesar de ainda sustentar o resultado de décadas de investimentos públicos, o País corre o risco de ficar para trás diante dos enormes avanços tecnológicos e importância que a indústria da saúde em geral – e das vacinas em particular – está ganhando pelo mundo. “Se a gente não aumentar a aposta e caminhar da produção para inovação, o Brasil não terá mais condição de participar do mercado global de vacinas.”

Para Gadelha, se o País continuar desinvestindo em CT&I, apenas absorvendo tecnologias transferidas, o futuro é de estagnação e de uma progressiva perda de importância no processo evolucionista do setor, perdendo o espaço que ainda ocupa no campo das vacinas. “Sem ciência, tecnologia e inovação, o SUS tem pés de barro”, afirmou, acrescentando que a inovação é a condição para que o sistema de saúde brasileiro continue a garantir o direito à vida e ao acesso às vacinas.

A edição especial do Jornal da Ciência, “Em busca da vacina verde-amarela”, está disponível para download gratuito neste link. Acesse a publicação completa e compartilhe!

Janes Rocha