O Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad) realizou no dia 1° de fevereiro a primeira reunião do órgão em 2018. O encontro ocorreu no Ministério da Justiça – onde o Conselho é instalado – e acabou sem nenhuma tomada de decisão, com pedido de vistas de quatro conselheiros.
Convocado em dezembro por Osmar Terra, ministro do Desenvolvimento Social e Agrário, para votar uma nova política de drogas, o encontro contou com a participação do médico e pesquisador da Fiocruz, Francisco Inácio Bastos, novo representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) no colegiado, além do ministro da Justiça, Torquato Jardim, membros do Ministério da Educação (MEC) e representantes da sociedade civil.
Bastos foi empossado como representante da SBPC no Conad em 29 de janeiro e participou de sua primeira reunião no colegiado. O pesquisador justificou seu pedido de vista, entre outras coisas, por não concordar com a resolução proposta por Osmar Terra – que propõe uma política baseada em internação por períodos prolongados e pressão sobre a oferta (embora vaga quanto à redução da demanda) – e por considerar que tratados internacionais tratam o tema de maneira mais apropriada e sintonizada com um mundo em permanente transformação.
O Brasil é signatário de diversos tratados da ONU e suas agências sobre o tema das drogas nas áreas de Saúde, com a Organização Mundial de Saúde (OMS), Educação, com a Unesco, e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês). Este último tem tido, segundo Bastos, relativo sucesso ao desarticular uma estrutura de associação quase automática entre abuso de substâncias e crime, que acontece em alguns lugares, e entre as drogas e o terrorismo, que existe em outros, mas não está presente em diversas circunstâncias. A título de exemplo, dependentes de heroína em tratamento de substituição pela metadona apresentam reduções dramáticas do seu envolvimento criminal, como demonstrado por dezenas de trabalhos. A desconexão da relação supostamente intrínseca entre drogas e terrorismo vem sendo observada muito perto de nós, a partir dos recentes acordos celebrados entre o governo colombiano e a extinta FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).
Em seu pedido de vista, o representante da SBPC no Conad defendeu que o Brasil aguardasse a votação, em Viena, na Áustria, de uma proposta preliminar (draft) a qual o Jornal da Ciência teve acesso. O encontro, na sede da UNODC, teve início no dia cinco de fevereiro e foi concluído em 9 de fevereiro, com a ratificação pelo grupo de delegados de praticamente todas as propostas centrais que constavam da proposta preliminar.
O documento estabelece um padrão internacional para o tratamento do uso de drogas e, entre outras coisas, diz que o uso abusivo de substâncias é um problema mundial que afeta significativamente as pessoas e suas famílias, com um custo muito alto para a sociedade, estimado em 1,7% do PIB em alguns países.
De maneira geral, o texto da ONU critica o que chama de uma “visão ultrapassada de alguns países”, que discrimina e estigmatiza o usuário e aborda o problema nas instâncias criminais, quando deviam tratar como questão de saúde pública mundial. O esboço é uma iniciativa da OMS e do UNODC.
O psiquiatra brasileiro José Manoel Bertolote, líder da Equipe de Controle de Transtornos Mentais e Cerebrais do Departamento de Saúde Mental e Toxicomanias da OMS, convidou Francisco Inácio Bastos a opinar sobre o documento que, após ser apreciado por uma equipe de técnicos de vários países, foi encaminhado à direção dos órgãos da ONU.
Bastos relatou ao Jornal da Ciência que, durante a reunião do Conad, ao propor a apreciação do draft que foi votado em Viena, foi levantada a questão da soberania nacional. O que, na visão do pesquisador, é um equívoco, pois, ao não considerar um tratado internacional e propor uma política que se contrapõe ao que é recomendado em todo o mundo, o Brasil sofreria um desgaste diplomático do qual pode e deve prescindir.
“Além disso”, explica Bastos, “o que eu procurei mostrar durante a reunião é que se acessarmos o site dessas agências e pesquisarmos por prevenção com base em recursos da educação e saúde, por exemplo, elas oferecem uma série de projetos formalmente avaliados e com bons resultados. Então, existem evidências científicas de ação que podem ser úteis e não devem ser desprezadas. Não faz sentido você realizar revisões científicas sistemáticas e ignorá-las”, justifica.
Outros pedidos de vista
Os representantes do MEC justificaram seu pedido de vista alegando que a resolução proposta pele ministro Osmar Terra é pouco explícita em relação às ações na área educacional. A União Nacional dos Estudantes (UNE) corrobora. Organizações ligadas aos Direitos Humanos também pediram vista. O Conselho Federal de Enfermagem e o Conselho Federal de Psicologia também se manifestaram contra a resolução.
O Ministério Público – que apesar de ter voz não é votante por atuar como um fiscal da reunião – alertou que vários aspectos da resolução entram em conflito com a Constituição e precisam de ajustes.
Pelo regimento interno do Conselho, o pedido de vista deve ser aceito automaticamente e tem prazo de uma sessão. Houve protestos dos que queriam votar o texto, mas o ministro Torquato Jardim, presidente do colegiado, não titubeou: “Lamento, mas o regimento é claro”, disse logo antes de declarar o fim da reunião.
Por enfatizar a proibição repressiva e o ideal de abstinência, em detrimento da redução de danos e de uma política de drogas isonômica, isto é, que regule de forma semelhante drogas com riscos à saúde, o cientista Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro da UFRN, diretor da SBPC e integrante do Conselho Municipal de Políticas Públicas sobre Drogas (Comud) de Natal, considera a proposta “eleitoreira” e diz que ela vai “na contramão da ciência e das tendências internacionais”. E ratifica: “O problema social não é o uso de drogas lícitas ou ilícitas, e, sim, o abuso delas. Mitigar esse abuso não é tarefa para o sistema policial e sim para o sistema de saúde.”
Plano de trabalho
A data da próxima reunião do Conselho já foi marcada e será no dia 1° de março. Bastos lamenta o agendamento e vê açodamento na atitude do governo: “Infelizmente (foi marcada para o dia primeiro), pois tenho praticamente certeza que o documento revisado e referendado pela OMS/UNODC não chegará a tempo. Trabalharei com a documentação oficial disponível hoje para reafirmar nossa posição.”
Até o dia 17 de dezembro de 2017 (data da penúltima reunião), o Conad ficou mais de um ano sem se reunir. No dia 1° de fevereiro foram aprovados integralmente os planos de trabalho para este ano, com cronograma de reuniões em 2018 e sugestões de pautas para o grupo técnico. Entre as sugestões estão o acompanhamento e atualização da Política Nacional sobre Drogas, a participação do Conad nas ações da Semana Nacional Sobre Drogas, inclusão de indígenas e quilombolas no debate acerca de drogas lícitas e ilícitas, acompanhamento e avaliação da gestão dos recursos do Fundo Nacional Antidrogas (Funad), elaboração de documento para sugerir temas para uma campanha governamental que aborde os danos ocasionados pelas drogas e a inclusão de assuntos internacionais acerca das drogas.
A atual Lei de Drogas
Responsável por instituir a atual política sobre drogas no País, a Lei 11.343, conhecida como Lei de drogas é alvo de críticas desde sua promulgação, em agosto de 2006. Para entidades da sociedade civil, a legislação contribuiu para o aumento da população carcerária brasileira. E alguns de seus dispositivos são questionados por reproduzir um modelo ineficaz de “guerra às drogas”.
O tema está no centro da discussão mundial sobre segurança pública e saúde. No Brasil, além da discussão no Conad, há um projeto de lei em discussão no Senado, proposto pelo então deputado federal Osmar Terra, em 2013. O tema também está sendo discutido no Supremo Tribunal Federal, com uma ação em curso sobre a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal.
Para Sidarta Ribeiro, a lei pretendeu um avanço, ao reduzir as sanções para os usuários, mas aumentou as sanções aos traficantes e não estipulou limites objetivos para distinguir usuários de traficantes com base na quantidade de drogas ilícitas apreendidas.
“A lei tornou a decisão sobre a distinção usuário/traficante uma avaliação subjetiva feita monocraticamente por um juiz, o que faz com que indivíduos de classe baixa apreendidos com alguns gramas de drogas ilícitas sejam presos como traficantes, enquanto indivíduos da elite econômica são tratados como usuários, mesmo quando portam grandes quantidades de substâncias ilícitas.” E continua: “A lei teve como efeito prático o aumento do encarceramento de indivíduos vulneráveis, a maioria negros e pobres, com grande aumento do encarceramento feminino”, avalia.
Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), divulgado em dezembro de 2017, o Brasil é o terceiro país em população carcerária no mundo, com 726.712 detentos. Desses, cerca de 40% são presos provisórios, ou seja, ainda não possuem condenação judicial. Mais da metade dessa população é de jovens de 18 a 29 anos e 64% são negros.
Na avaliação de Francisco Inácio Bastos, a atual Lei de Drogas sobrecarrega a justiça brasileira: “25% dos presos estão nos presídios pelo simples uso de drogas, não são acusados por tráfico, o que está errado, afinal a lei diz que o porte de drogas não é passível de pena de privação da liberdade, a lei diz que para esse tipo de crime a pena é alternativa. Então, as pessoas vão para o sistema prisional e acabam buscando respaldo em facções. O resultado nós estamos vendo: o desastre e a carnificina dentro dos presídios com facções brigando por poder. Nós perdemos o controle sobre o sistema carcerário.”
Ouça aqui o áudio da reunião do Conad.
Marcelo Rodrigues, estagiário do Jornal da Ciência