Uma coalizão de organizações científicas e sociais, incluindo a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e a Articulação Brasileira de Indígenas Antropólogos (ABIA), divulgou nessa quarta-feira, 18 de setembro, uma nota de denúncia e repúdio aos ataques na Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, no Mato Grosso do Sul. A ação da Polícia Militar resultou na morte do jovem indígena Neri Ramos, em mais um episódio de violência recorrente contra o povo Kaiowa e Guarani Ñandéva.
As instituições signatárias expressam profunda indignação com a repetição desses eventos trágicos, que violam direitos constitucionais indígenas e perpetuam uma história de violência territorial. Elas exigem ações imediatas do Governo Federal, incluindo o julgamento da homologação da TI Ñande Ru Marangatu, paralisado desde 2005, e providências urgentes para proteger as comunidades indígenas.
A nota também destaca que desde 1983 a região tem sido palco de inúmeros ataques letais contra líderes indígenas, refletindo a persistente negligência e ineficiência do Estado em garantir a proteção e os direitos dos povos originários.
As entidades apelam por uma ação coordenada do governo e das instituições judiciárias para pôr fim à escalada de violência e assegurar o cumprimento das leis que protegem os territórios indígenas. “É, portanto, perante esse quadro geral de violências e de violações aos direitos constitucionais e humanos, que nos unimos às instituições e organizações que vêm denunciando os casos e requerendo uma investigação imparcial de responsabilidades, e a tomada das devidas e urgentes providências legais”, escrevem.
Leia a nota na íntegra abaixo:
Nota de denúncia e de repúdio ao ataque contra a vida na Terra Indígena Ñande Ru Marangatu: um pedido de basta ao estado de violência no Mato Grosso do Sul!
No dia de hoje, 18 de setembro de 2024, a ABA tomou conhecimento de uma investida da Polícia Militar ocorrida esta manhã, vitimando fatalmente um jovem indígena, Neri Ramos, na Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, da comunidade de mesmo nome, no estado de Mato Grosso do Sul.
No mês passado, e em situações anteriores ao longo dos anos, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), por meio de sua Comissão de Assuntos Indígenas, já vem se manifestando sobre episódios de igual teor, o que demonstra uma recorrência de violências contra o povo indígena Kaiowa, em todo aquele estado, sem que haja uma ação eficiente por parte do Estado brasileiro para coibí-las, puni-las e solucioná-las. Tal inércia, portanto, revela- se parte do problema crônico que é a violação do direito constitucional dos Kaiowa, assim como dos Guarani Ñandéva, aos seus espaços de ocupação tradicional.
No presente momento, a ABA, juntamente com a ABIA (Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges), a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS); a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), a Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias (ESOCITE.BR) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) vêm a público manifestar preocupação e repúdio por esta situação crônica deixada sem solução, e sua demanda para que o Governo Federal, por meio de sua Casa Civil e de seus ministérios da Justiça e Segurança Pública, dos Povos Indígenas, de Direitos Humanos e Cidadania venham, de forma imediata, promover uma solução que seja duradoura, de permanente vigilância e controle sobre estes espaços conflagrados, onde o braço do Estado de direito se revela incapazperante forças articuladas, local e nacionalmente, na repressão às reivindicações das comunidades indígenas pela efetivação de seu direito ao território.
Com as agressões de hoje, somam-se já quatro ataques à Terra Indígena Marangatu em específico. Esta TI chegou à sua última etapa legal de regularização, sendo homologada, mas com ação paralisada no Supremo Tribunal Federal desde 2005, sem ser julgada.
No ano de 1983, o líder indígena Marçal de Souza foi assassinado no mesmo local do episódio de hoje, o tekoha (território) Ñande Ru Marangatu. Em 2005, um ataque por forças paramilitares resultou no assassinato de Dorvalinho Rocha e, em 2015, a partir de mobilização de fazendeiros, o cerco aos indígenas resultou no assassinato de Simião Vilhalva.
Além da comunidade de Marangatu, os ataques contra os Kaiowa e os Guarani Ñandéva se sucederam no estado: em 2002, ao retornar a seus espaços territoriais de onde havia sido expropriada, a comunidade de Kurusu Amba teve assassinada uma idosa, Churite Lopes. Em 2003, foi a vez da comunidade de Takuára ter seu líder, Marcos Verón, assassinado. Em 2009, as comunidades de Pyelito Kue e de Mbarakay foram atacadas, com vários de seus integrantes sendo feridos por armas de fogo e projéteis de borracha. Também, em 2009, a comunidade Guarani Ñandéva de Ypo’i teve Genivaldo e Rolindo Vera sequestrados; o corpo de Genivaldo foi encontrado crivado de tiros em um córrego, mas o corpo de Rolindo Vera nunca foi recuperado. Em 2011, a comunidade de Guaivyry foi atacada, resultando no desaparecimento de seu líder Nísio Gomes. Posteriormente, a Polícia Federal concluiu que ele foi assassinado. Em julho de 2016, deu-se o despejo da comunidade de Apika’y (em Dourados), sem que a comunidade até hoje tenha visto avançar os procedimentos de demarcação de seu território.
Em 2022, o ataque, também com vítimas fatais, deu-se nas comunidades de Guapo’y Mi Tujury (em Amambai) e de Kurupi/Santiago Kue (em Naviraí). Em agosto último, há apenas um mês, portanto, o ataque foi à comunidade originária do território de Panambi/Lagoa Rica, com vítimas hospitalizadas em estado grave.
Em todos estes casos, as comunidades buscavam retornar aos seus espaços territoriais, de onde forçadamente tiveram que sair, por efeitos de uma política neocolonial, ao longo do século XX. Nas últimas décadas, grande parte destas ações foi concretizada por agentes ligados a uma empresa de segurança privada, a Gaspen, que foi identificada pelo Ministério Público Federal como tendo atuação paramilitar e criminosa.
Em 2022, o que se assistiu foram ações violentas, de seguranças privados armados, no caso de Kurupi, e da Polícia Militar, no caso do Guapo’y Mi Tujury. Neste último, a presença da PM caracteriza uma ação de forças propriamente do estado que, pelas imagens e filmagens divulgadas pelos indígenas, se mostrou como uma operação de guerra. Mais precisamente, viu-se uso de força massiva por parte da PM, com utilização de um helicóptero, disparando- se enorme quantidade de tiros com projéteis de borracha, mas também armas de fogo, o que resultou em mortes em Guapo’y Mi Tujury (uma delas já identificada: Vito Fernandes) e em pessoas gravemente feridas em ambas as comunidades. Segundo informações do Hospital Regional de Amambai, três indígenas foram liberados da internação hospitalar, mas pelo menos quatro ainda se encontravam em estado de maior atenção, inclusive com ferimentos por arma de fogo na cabeça e em outras regiões vitais do corpo. A PM buscou justificar sua conduta com o argumento de que fora acionada para “coibir crime contra o patrimônio”. Negou, assim, a condição de se tratar de um conflito territorial de caráter étnico, envolvendo indígenas, com um uso absolutamente desproporcional de força. Neste novo cerco pela PM, novamente tomba uma vítima indígena.
É, portanto, perante esse quadro geral de violências e de violações aos direitos constitucionais e humanos, que nos unimos às instituições e organizações que vêm denunciando os casos e requerendo uma investigação imparcial de responsabilidades, e a tomada das devidas e urgentes providências legais. É constatável também dos fatos uma persistência inamovível de cada comunidade em recuperar seus territórios tradicionais, o que remete ao princípio constitucional do reconhecimento destes, competindo ao Estado brasileiro demarcá-los.
Nesses termos, solicitamos:
Como dito, ao Governo Federal, por meio dos seus órgãos antes elencados, uma ação imediata de vigília e controle permanentes no Mato Grosso do Sul;
À 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF o acompanhamento contínuo de fiscalização e procedimentos, segundo suas atribuições;
À AGU e/ou à Procuradoria Geral da República, na figura de seu Procurador Geral, em razão de decisões judiciais da JF/MS e do TRF-3, requerer ao Presidente do STF a cassação destas decisões, determinando a atuação da PF e da FNSP;
Ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o acompanhamento e a averiguação das etapas do processo legal sobre os casos em seu conjunto;
Ao Presidente do STF, o agendamento do julgamento do Mandado de Segurança contra a homologação da TI Ñande Ru Marangatu;
Ao MPF/MS a requisição da investigação sobre a ação do(s) PM(s) que assassinou(ram) o indígena Neri Ramos;
Ao Ministério da Justiça, a apuração rigorosa dos crimes que tenham sido cometidos e sua punição.
Brasília-DF, 19 de setembro de 2024
Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges (ABIA)
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP)
Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias (ESOCITE.BR)
Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS)
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)
Confira o documento neste link.
Jornal da Ciência