O excesso de burocracia tem prejudicado a pesquisa científica brasileira e impedido o avanço tecnológico do País. Problemas na importação de materiais essenciais para os projetos, falta de compreensão pelos órgãos fiscalizadores das peculiaridades do processo científico, dificuldades na liberação de recursos e exigências excessivas na prestação de contas são alguns exemplos das barreiras cotidianas para que a ciência brasileira possa avançar e atingir melhores posições nos rankings de inovação.
O calvário por que passam os cientistas para conseguir avançar em suas pesquisas afeta como um todo o desenvolvimento econômico e social do País, desperdiçando recursos financeiros e humanos, especialmente em uma era tecnológica como a que vivemos hoje. “O mundo inteiro está competindo por novos conhecimentos. É como se os outros países estivessem correndo em uma pista olímpica e a gente na areia fofa, em areia movediça”, descreveu a professora da Universidade de São Paulo (USP) Lygia da Veiga Pereira, em audiência pública realizada nesta quinta-feira, 30, na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados.
O debate, solicitado pelo próprio presidente da CCTCI, deputado Félix Mendonça Júnior (PDT/BA), atendeu a um apelo do Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies), da SBPC e de outras entidades científicas para que o Congresso Nacional colabore na busca de soluções para reduzir os entraves burocráticos que afetam a pesquisa brasileira. Para a professora Lygia Pereira, que representou a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SPBC) na audiência, parte do problema é a falta de vontade política para, de fato, construir um método aderente às peculiaridades do processo científico. “Nós temos que proteger a população, mas também garantir o avanço científico.”
Entraves
A rotina dos pesquisadores contém obstáculos difíceis de compreender em uma sociedade realmente dedicada ao avanço científico e tecnológico. Apesar dos avanços obtidos através do Marco Legal de CT&I, editado em 2016 e regulamentado em 2018, a simplificação de processos de importação, contida na nova Lei, ainda não está plenamente em vigor. Segundo a representante da SBPC, laboratórios ainda padecem com prazos entre 60 a 90 dias para concluir uma importação de reagentes necessários para a continuidade de pesquisas em desenvolvimento, apesar de o Marco Legal prever importações simplificadas. Prazos tão alongados muitas vezes colocam a perder o desenvolvimento das análises e geram desperdício de materiais e recursos na tentativa de projetar as demandas no início dos projetos.
Para atender às inúmeras etapas exigidas no acompanhamento e prestação de contas pelos órgãos de controle, a inteligência brasileira tem desperdiçado boa parte de seu tempo em funções meramente burocráticas. Segundo o presidente do Confies, Fernando Peregrino, cerca de 35% da atividade de um pesquisador acaba sendo dedicada ao atendimento dessa burocracia. “Ele joga fora 35% (do tempo) porque é um desvio de função”, denuncia. O cálculo foi feito baseado na atividade cotidiana dos pesquisadores em 2016 e, com base nessa cota de tempo desperdiçada, o Confies chegou a um resultado estarrecedor para a economia brasileira: R$ 9,1 bilhões são desperdiçados com a burocracia federal e estadual imposta à ciência brasileira. “Eu encontrei um caminho (para medir) um prejuízo financeiro, mas há um prejuízo muito maior que é o prejuízo estratégico para esse País. Suspender a entrada de tecnologia no nosso sistema produtivo o coloca numa situação vexaminosa como a que temos hoje com déficit fiscal por falta de arrecadação”, alertou o presidente do Confies.
Outro efeito do excesso da cultura burocrática constatado pelas fundações de apoio é o dispêndio da máquina pública em revisar operações financeiras no setor já concluídas e aprovadas. Um exemplo apresentado envolve a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) que teve 763 convênios de 1991 reanalisados por exigência do Tribunal de Contas da União (TCU). Para realizar essa revisão, foram gastos R$ 500 mil em recursos públicos e recuperados apenas R$ 137 mil por eventuais inconsistências constatadas nessas transações. “Francamente, nós estamos jogando dinheiro público fora”, concluiu Fernando Peregrino.
Para o secretário-executivo da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Gustavo Balduíno, está no cerne do problema o fato de serem os órgãos de controle os reais aplicadores das leis que afetam o setor e não o Executivo, como se poderia imaginar. “Os órgãos de controle interpretam a Lei segundo o entendimento deles a ponto de, na minha opinião, praticamente fazerem uma nova Lei”, alertou. “O problema então é quem aplica a Lei e não falta de Lei.” Esse sistema em que a interpretação dos órgãos de controle supera, na prática, todo o trabalho empreendido para modernizar a legislação brasileira é um dos grandes desafios para criar um ambiente mais adequado para a pesquisa científica.
O conflito entre os órgãos de controle e o sistema de pesquisa e inovação tem relação também com uma incompreensão da natureza do processo científico e uma insistência dos fiscais em encaixar os projetos de desenvolvimento tecnológico em um modelo de etapas e previsibilidade que não se aplica no campo do conhecimento. “A ciência, implicitamente, é imprevisível. A gente sabe que vai ter problemas, a gente sabe que vai fazer correções”, lembrou o vice-presidente do Fórum Nacional de Gestores de Inovação e Transferência de Tecnologia (Fortec), Gesil Amarante Segundo. “O que a gente está pedindo é condições para trabalhar. Inclusive para fazer com que as descobertas, o acúmulo de conhecimento que é obtido nas nossas instituições, vá para a sociedade”, complementou.
Soluções
Constatados os efeitos nocivos da burocracia, a comunidade científica apresentou ideias para seguir avançando na adoção de boas práticas que estimulem o desenvolvimento científico e reduzam as amarras que restringem a pesquisa. A principal proposta apresentada foi a adoção de uma rubrica única para o setor de CT&I, onde custeio e capital sejam tratados juntos como “investimento” na execução dos projetos de pesquisa. Este modelo, segundo Fernando Peregrino, está em linha com as melhores práticas adotadas no mundo, inclusive atendendo aos critérios de financiamento da ciência utilizados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Banco Mundial (BIRD), Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Muitas pessoas aqui nesta Casa dizem que ‘ciência é investimento’. Isto não é uma figura de retórica, isto é um dado orçamentário”, lembrou o presidente do Confies. “Nós não queremos que não tenha controle. O que nós queremos é um controle racional, inteligente, que seja adaptado a casa situação”, complementou.
Um esforço para viabilizar, de fato, as regras mais modernas já estabelecidas no Marco Legal de CT&I também foi um caminho apontado para reduzir os entraves. Para o vice-presidente do Fortec, assegurar que o setor possa remanejar recursos entre programações orçamentárias de CT&I, conforme previsto na Constituição Federal, e garantir que os dispositivos do decreto de regulamentação do Marco Legal sejam executados é o primeiro passo para resolver os problemas burocráticos do setor. “Se isso estiver plenamente em vigor, a gente nem vai precisar trabalhar numa proposta do tipo rubrica única. Os instrumentos estão lá, mas a gente nem consegue fazer com que esses instrumentos sejam aprovados”, afirmou Gesil Amarante Segundo.
A Andifes alertou ainda que a falta de recursos financeiros para o setor continua sendo um problema crucial para o desenvolvimento científico do País e que o setor já tem normas suficientes para reger adequadamente o setor. “A burocracia é um problema? Sim, é um problema. Mas hoje e sempre, mais do que nunca, o problema é a falta de recursos. A quantidade de redução das bolsas da Capes ocorrida há duas semanas vai impactar diretamente na pesquisa do Brasil em breve. Quem faz pesquisa e inovação no Brasil é o setor público”, frisou Gustavo Balduíno. “Não faltam leis. A aplicação das leis é que deve seguir uma nova cultura.”
Presente no debate, a coordenadora-geral de Auditoria das Áreas de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações da Controladoria-Geral da União (CGU), Karin Webster, admitiu que, por muitos anos, o procedimento dos órgãos de controle era excessivamente focado na conformidade dos processos, em busca de erros formais, sem considerar as peculiaridades do setor. Mas garantiu que a CGU tem se esforçado para mudar essa cultura e que avanços têm sido feitos. “O que a gente constata não é uma falta de legislação. O setor de pesquisa tem evoluído muito nessa parte legislativa e, principalmente, buscando essa flexibilidade, essa diferenciação, essa forma de encarar os produtos, os projetos de pesquisa, como deve ser. Não como uma commodity, não como um produto de prateleira”, explicou. “A gente, do controle, tem ciência disso. De uma forma geral, as instituições de controle estão fazendo essa mudança”, assegurou.
Para auxiliar na confluência dessas ações de redução dos gargalos na pesquisa científica e de inovação, o presidente da CCTCI anunciou que irá criar um grupo de trabalho no âmbito da comissão com foco no debate de propostas para a redução da burocracia. “Vamos fazer o que for necessário para colaborar com a ciência brasileira”, afirmou o deputado Félix Mendonça Filho. O grupo contará com representantes das entidades científicas e órgãos de controle a serem indicados pelas entidades que participaram da audiência pública.
Link com a íntegra da audiência pública
https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/webcamara/videoArquivo?codSessao=77329#videoTitulo
Mariana Mazza, especial para o Jornal da Ciência