Renato Janine Ribeiro é ex-Ministro da Educação do Brasil em 2015 e professor titular sênior de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo. Atualmente, é presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), com mandato até julho de 2023. Entre outros livros, publicou A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil (Prêmio Jabuti de Ensaio, 2001), Ao leitor sem medo – Hobbes escrevendo contra seu tempo e Duas ideias filosóficas e a pandemia (Estação Liberdade, 2021).
Veja a seguir o resultado da nossa conversa:
Existe uma melhor forma para lidarmos com dilemas éticos? Como decidir perante um eventual conflito entre dois valores?
Na verdade, a única forma de lidarmos com dilemas éticos é encará-los e assumi-los. É vermos que não existe receita. Eu tenderia a dizer que, quando de um lado está a vida de uma pessoa ou de um ser vivo, esse é um argumento forte para optar por isso. Então, digamos, entre deixar uma pessoa morrer de fome e furtar comida sem uso de violência, eu acho que é legítimo você furtar comida. Aliás, isso, inclusive, é aceito tanto para o Santo Tomás de Aquino, quando fala no furto por necessidade, quanto pelo nosso próprio Código Penal, que isenta de pena quem rouba ou quem furta porque não tem alternativa, pois se não vai morrer. Agora, existem casos muito mais complicados. Eu lembro de uma história do programa Você Decide, em que uma pessoa era acusada de um crime e quem podia isentá-la era uma mulher que, porém, naquela hora estava saindo do motel com um amante, sendo ela casada. Então, para ela, para isentar o suspeito inocente, ela precisava colocar em crise o casamento dela. De um lado, está ela assumir as consequências de um ato que ela praticou, o adultério, e, do outro lado, está salvar um inocente da prisão. Então, não vejo muita dúvida, mas eu penso que essas histórias são boas de serem contadas, porque elas ajudam as pessoas a simular escolhas e a imaginação é poderosa para depois, na vida, elas poderem fazer isso. O que é bastante ruim do ponto de vista pedagógico, é entender que tem uma coluna, em que todas as coisas são boas de um lado e outra, de que tudo o que está errado está do outro lado e que então isso é fácil. Não é fácil, tem que escolher.
Uma pessoa consegue ser ética o tempo todo?
É possível. Claro que uma pessoa pode seguir sempre condutas corretas. Não tem nenhuma impossibilidade. Eu acredito até que a maior parte de pessoas é mais ética do que menos ética. Se bem que aí também é uma quantificação do mais e do menos. Não é o 100% da pergunta, mas é possível.
O que avaliar para que nossas decisões sejam éticas? Ainda nesse sentido, como lidar com os nossos vieses inconscientes?
Basicamente, você tem duas chaves para levar em conta. Uma chave é o famoso certo e errado, em que matar, roubar, furtar, mentir são coisas erradas, digamos isso. De outro lado, você tem as consequências dos atos. Um ato que seja errado, em princípio, pode, porém, ter consequências mais positivas do que o contrário.
Qual a chave para escolher, então? É não ser baseado no egoísmo. É eu pensar quais são as consequências de um ato que seria justo para pessoas inocentes, terceiras pessoas, e qual a consequência do ato adverso. Vou dar um exemplo: imagine que você tem um assassino batendo na porta da sua casa e querendo saber onde está a pessoa que ele quer matar. Mentir é errado? É. Mas mentir, nesse caso, não é a única forma de você salvar uma vida? Então, não há discussão. Essa escolha não é tão difícil.
Quanto aos vieses inconscientes, o único jeito é tentar torná-los conscientes. Uma coisa que Freud descobre, que é muito importante, é que nós tentamos apresentar nossas escolhas como mais honestas possível e nem sempre são. Muitas vezes nossas escolhas foram feitas por puro egoísmo, por pura busca de vantagem, e nós temos que ser atentos a isso. Nos autoquestionarmos. Tudo isso faz parte da educação. Não só a educação que a sociedade dá, mas uma espécie de autoeducação. Quando você se questiona. Então, sobretudo quando uma pessoa começa a criticar muito outras, a condenar muito outras pessoas, é bom que ela seja capaz de se autoquestionar e ver se não é ela que está errada ou se ela não está, às vezes, querendo se apresentar com uma pessoa decente, coisa que não é.
Como aumentar o debate sobre ética no dia a dia da sociedade brasileira?
Tem que aumentar mesmo. Não existe segredo para isso. Nós temos que questionar o caráter ético das escolhas e fazer esse tipo de discussão que estamos fazendo aqui nessa entrevista. Colocar pontos importantes.
A construção de relações baseadas na ética e na confiança também pode contribuir para uma sociedade mais feliz?
É possível, mas certamente contribui para uma sociedade mais autêntica. Veja, nós estamos vivendo um momento em que os segredos estão sumindo. Hoje é cada vez mais difícil você guardar um segredo, não saber o que alguém fez. O avanço das redes sociais, o avanço da internet, a computação fazem que seja muito fácil você descobrir o que o outro fez, até mesmo o seu companheiro, sua companheira. Então, eu penso que diante disso, nós temos algumas possibilidades. Eu já escrevi até um artigo sobre isso, em 2014 ou 2015, no jornal gaúcho Zero Hora. O que eu disse era o seguinte: ou você tem uma equipe tremenda a seu serviço, coisa que só os milionários podem ter, para te limpar tudo na internet que seja nocivo, ou você assume tudo o que você faz. Então, no limite, se você trai o seu parceiro, então que isso seja uma coisa explícita, que ele saiba, que você converse com ele. É o pessoal que fala em casamento aberto. Eu acho que isso é extremamente difícil. Claro, se as partes estiverem de acordo, não vejo problema. O problema é estarem de acordo e isso não machucar as pessoas. Não é fácil não machucar, mesmo estando de acordo da boca para fora. Agora, talvez, chega um momento que todo e qualquer adultério seja descoberto, então, nesse caso, seria melhor que as pessoas tivessem isso visível. Isso vai fazer as pessoas mais felizes? Talvez não, mas vai fazê-las mais autênticas. Pessoas mais autênticas serão mais felizes? Esperaria que sim, mas não tenho certeza disso.
Considerando a realidade de que muitos indivíduos não têm suas necessidades básicas atendidas, como engajar as pessoas para a construção de uma sociedade que valorize mais a ética?
Atender às necessidades básicas é um primado ético tremendo. No Brasil, um grande problema ético, o nosso grande problema, é a fome e a miséria. Então, se nós não resolvermos isso, continuaremos sendo uma sociedade antiética. Uma sociedade que valoriza a desigualdade social, que aceita isso e que, além do mais, nos últimos anos, aceitou a violência, a agressividade, o racismo ou a homofobia, os preconceitos. Isso é uma falha ética muito grande.
Na sua visão, existe alguma relação entre a ética e a redução das desigualdades?
Sim. A redução das desigualdades é uma imposição ética. Vamos só distinguir. Na verdade, existe desigualdade social, em praticamente todos os países do mundo, exceto naqueles que tem, vamos dizer, uma sociedade pequena, com pouca renda, em que as pessoas são mais iguais, povos, ditos, selvagens. Agora, uma coisa é desigualdade. Outra coisa é injustiça social. Você pode ter um certo nível de desigualdade social, que seja administrável. Injustiça social é outro papo. Quando você tem injustiça social, as coisas ficam muito mais complicadas e o sofrimento é grande.
Como descreveria o papel das empresas e dos órgãos públicos na promoção da ética?
Penso que elas devem, essencialmente, discutir. Códigos de ética são criados por empresas, por órgãos públicos, por categorias profissionais. Em todos esses casos, o código é uma espécie de lei e que procura se basear em valores éticos. Então, por exemplo, antes mesmo de ser lei que o assédio moral e que assédio sexual são coisas erradas e que devem ser punidas, já havia códigos de ética dizendo que isso não deve ser feito. Agora, qual é o problema do código? O código é código, ou seja, ele estabelece exatamente o que é certo e o que é errado. Você não pode ter leis vagas. As leis têm que ser muito claras. Então, assassinato não é qualquer coisa, assassinato é algo muito específico. Acontece que quando você descreve muito bem um tipo, um tipo criminal, que é o termo técnico, quando se descreve muito bem um tipo, para não pegar ninguém desprevenido, para as pessoas saberem exatamente o que é proibido e, portanto, o que é permitido, quando você faz isso, você sai da discussão ética por excelência. Por uma discussão ética, por excelência, matar uma pessoa não é só enfiar uma faca, dá um tiro, ou envenenar. Matar uma pessoa pode ser não acudi-la, quando ela tem fome, quando foi machucada, atropelada, tudo mais, Na verdade, a nossa lei até pune quem não acode uma pessoa em perigo, mas, em princípio, o que eu quero dizer é que o importante da discussão ética é a gente levantar a questão não matarás e começar a perguntar às pessoas. Uma coisa meio socrática. O que é matar? As pessoas vão falar em faca, veneno, tiro. Aí você fala, mas e deixar uma pessoa que você pode salvar, morrer? Isso não é matar? Essa é uma boa forma de você educar as pessoas para um sentido ético mais expandido e é da natureza da ética se expandir.
Quais são os principais desafios éticos da atualidade?
Eu acho que o primeiro de todos é a desigualdade social e a injustiça social. A desigualdade não é sinônimo de injustiça social, mas muitas vezes acaba sendo, porque a desigualdade, praticamente em todo o mundo, é maior do que se justificaria, digamos, pelo fato de que alguns se esforcem mais, alguns atuem mais, etc. Então, esse é um grande problema. O outro é a gente se tornar uma sociedade apta a dizer a verdade, uma sociedade que assuma realmente valores vinculados à verdade.