Especialistas defendem que soberania depende de valorizar a jovem democracia do Brasil

Evento realizado pela SBPC, com apoio da ABC, Finep e Unifesp, reuniu cientistas e ex-ministros para debaterem as crises democráticas atuais e o papel brasileiro nesse contexto
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Raiane Patrícia Severino Assumpção, reitora da Unifesp, e Francilene Garcia, presidente da SBPC.(Fotos: Jardel Rodrigues/SBPC)

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em parceria com a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e com o apoio da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), realizou nessa segunda-feira, 6 de outubro, o seminário “Democracia, ciência e soberania”.

O evento foi realizado no Auditório Profª Drª Ieda M. L. Maugeri, na Reitoria da Unifesp, e reuniu autoridades científicas, como as presidentes da SBPC, da ABC e da Finep, Francilene Garcia, Helena Nader e Luiz Antônio Elias; os ex-ministros Clélio Campolina Diniz e  Luiz Carlos Bresser Gonçalves Pereira, a reitora da Unifesp, Raiane Patrícia Severino Assumpção, e estudiosos dos vários aspectos da democracia, como o cientista social Fernando Guimarães Rodrigues, do movimento “Direitos Já!”; o psicanalista Christian Dunker; o professor de Direito Internacional, Daniel Campos de Carvalho (Unifesp); o economista Ladislau Dowbor (PUCSP); e Clemente Ganz, representando as Centrais sindicais.

A ação celebrou o “Dia de Luta pela Democracia Brasileira”, comemorado em 5 de outubro – dia em que foi promulgada a Constituição de 1988 –,  uma oportunidade de reflexão sobre o período da ditadura militar e a importância da liberdade em contraste com o autoritarismo.

Em 2023, a SBPC, com o apoio de cerca de 100 instituições científicas e associações da sociedade civil, propôs a criação de uma data dedicada à luta pela democracia brasileira, para refletir sobre sua importância e seu papel na construção de um país livre, soberano e desenvolvido. A proposição dessa data foi inspirada no “Día Nacional de la Memoria por la Verdad y la Justicia” da Argentina.

“A SBPC desde a sua criação, em 1948, tem sido uma instituição que sempre procura trazer à sociedade que ela se ocupe com os valores da Ciência, sendo esses valores muito inseridos na luta pela soberania e pela democracia. Ao longo de todas essas décadas, a SBPC tem transformado todas as suas Reuniões Anuais em espaços políticos, de diálogo, reflexão, construção e resistência. Quando as moções foram aprovadas ao longo das assembleias de sócios nas Reuniões Anuais, em muitos momentos se buscou anistia nos tempos tenebrosos da ditadura, a luta pelas Diretas Já! e a defesa da Ciência olhando para a fundamental defesa da Democracia”, pontuou a presidente da entidade, Francilene Garcia, na mesa de abertura.

“É muito importante lembrar das palavras do deputado Ulysses Guimarães (1916-1992) quando promulgou a Constituição-cidadã de 1988: ‘temos ódio e nojo da ditadura’. É o que a gente repete a cada celebração desta data e da nossa Constituição. Então, a nossa missão, ao celebrar cada dia 05 de outubro, é sempre de rememorar o compromisso com a liberdade, com a justiça social e, sobretudo, com a Ciência”, continuou.

Garcia também trouxe fragmentos da história da SBPC e convidou o público mais jovem a explorar o acervo da entidade, totalmente digitalizado, para conhecer mais do período.

“Em 1978, ainda naquela fase de incertezas que o País vivia [por conta da ditadura militar], o estatuto da SBPC foi ajustado para incluir o direito à liberdade de opinião, cultura e difusão da Ciência. Nas palavras do ex-presidente e amigo Ennio Candotti (1942-2023), ele dizia que aquela mudança estatutária de 1978 foi uma verdadeira revolução, uma reunião que se prolongou até às 6h da manhã do dia seguinte e que simbolizou ali uma resistência da comunidade científica à mordaça da ditadura. Um pouco depois, em 1985, quando já se tinha aquela esperança de um começar de novo, e a Constituinte já começava a ser construída, a SBPC lutou por se fazer vincular, pela primeira vez, recursos para a Ciência e para a Educação. A campanha de Diretas Já! e o impeachment de Collor em 1992 também contaram com fortes mobilizações da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência”, contou.

A quarta mulher e segunda pessoa do Nordeste do Brasil a presidir a SBPC ressaltou a importância de encabeçar este título e também citou figuras conhecidas do passado político da SBPC e do país, como o jurista Anísio Teixeira, primeiro nordestino presidente da entidade (de 1955 a 1959):

“Anísio Teixeira (1900-1971) definia a SBPC de uma forma muito generosa, como ‘movimento de auto-organização da Ciência Brasileira’. Quando estava se constituindo o primeiro ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e as instituições já existentes passando a ter um pertencimento a um conjunto de construções públicas que começava a desenhar, ele dizia que ‘a SBPC brigava por uma Ciência livre que se organiza para servir ao povo.’”

Segundo Garcia, o passado histórico deixou uma herança para o presente, desafios que precisam da ciência para serem enfrentados.

Acompanhando a presidente da SBPC, a reitora da Unifesp, Raiane Patrícia Severino Assumpção, destacou a importância de proteger a democracia e a ciência como pilares da soberania.

“Em pleno século XXI, nós estamos aqui fazendo uma discussão sobre o lugar da Ciência, o seu papel e a necessidade da sociedade como um todo reconhecer e compreender que sem Ciência não é possível nós termos desenvolvimento social, econômico e político, e muito menos soberania. Não tem como nós garantirmos soberania sem democracia.”

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Christian Dunker, psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP); Helena Nader, presidente da ABC; Fernando Guimarães Rodrigues, do movimento Direitos Já! Fórum pela Democracia; e Daniel Campos de Carvalho, professor de Direito Internacional da Unifesp.

Após a mesa de abertura, o evento contou com uma mesa-redonda inicial, intitulada “Democracia em risco? Ciência, Autoritarismo e Soberania”. A atividade foi coordenada pela presidente da ABC e presidente de honra da SBPC, Helena Nader, e contou também com as participações de Fernando Guimarães Rodrigues, do movimento Direitos Já! Fórum pela Democracia; Christian Dunker, psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP) e Daniel Campos de Carvalho, professor de Direito Internacional da Unifesp.

“Para mim, este momento é de grande honra. Refletir sobre o valor da liberdade e o contraste com o autoritarismo já marcou a nossa história. Estamos reunidos para debater uma questão central e urgente: que democracia queremos consolidar diante do avanço do extremismo e da corrosão institucional? Nós não podemos esquecer isso, não podemos ignorar os ventos que sopram contra as democracias em todo o mundo”, ressaltou Helena Nader.

A presidente de honra da SBPC destacou a importância da comunidade científica em momentos como este. “Vemos forças antidemocráticas que cultuam a violência, exaltam a ignorância e atuam como milícias físicas e digitais para subjugar nossas instituições e sufocar nossas liberdades. O autoritarismo se fortalece quando a sociedade internacional vacila diante da arbitrariedade. E a sociedade internacional está calada, a gente não pode deixar de reconhecer o silêncio da equivalente à SBPC nos Estados Unidos, a AAAS (American Association for the Advancement of Science). A SBPC tem quase 80 anos, a AAAS 180 anos. Não podemos esquecer das Academias de Ciências americanas, silêncio absoluto. Isso é uma sinalização para nós. Porque a Ciência, na nossa visão, é um pilar de resistência.”

Representante do movimento Direitos Já! Fórum pela Democracia, Fernando Guimarães Rodrigues destacou a ascensão da extrema-direita e movimentos que condenam o processo democrático.

“Em todo o mundo, hoje, o avanço da Ciência e da Tecnologia permite que praticamente tudo possa ser feito. Portanto, o desafio que as nossas sociedades têm é questionar o que deve ser feito. E para que a gente possa ter um debate sobre o que deve ser feito, a gente precisa fortalecer a academia, as instituições democráticas e a sociedade. Só que esse movimento fascista que se alastra hoje não só no Brasil, veio em um momento muito ruim da nossa história, um pouco antes do impeachment de Dilma Rousseff. Era um momento em que nós precisávamos avançar no debate democrático, mas tivemos um retrocesso.”

Rodrigues reforçou o papel da população na luta por nações democráticas. “A democracia é uma flor frágil, delicada, e que exige cuidados todos os dias. E esse papel de cuidar da democracia cabe essencialmente à sociedade civil.”

O psicanalista e professor da USP, Christian Dunker, chama o momento global hoje de “movimento de retração democrática”, complementando a importância do engajamento da sociedade. “Quando a gente tem, ao longo do mundo, uma diminuição da tração democrática, da força da democracia, do investimento nesta força reguladora, você tem sistematicamente uma espécie de decaimento da representação popular.”

Dunker destacou o papel da Ciência nesse cenário. “A universidade e a pesquisa têm duas principais funções. Uma, é propor conhecimento legítimo, evidências que possam subsidiar a formação de políticas públicas, formação de cidadãos críticos. A segunda função é zelar pelo próprio espaço público, zelar pelas regras do jogo. Estabelecer, vamos dizer assim, quais são os personagens, os argumentos, os fóruns e a forma da discussão que conserve a Ciência – e que conserve, portanto, o uso da razão. E essas duas missões, infelizmente, foram desequilibradas.”

Já para Daniel Campos de Carvalho, professor da Unifesp, o Brasil vive um dilema: a consolidação da democracia iniciada nos anos 1980 não se consolidou.

“A gente vive um período em que falar da crise da democracia é um chavão. Crise da democracia é algo recorrente na história, mas hoje vivemos uma crise global, nos dois sentidos da palavra. Uma crise da democracia como sendo algo comum a várias experiências políticas nacionais  – é a crise da democracia na Turquia, na Argentina, nos Estados Unidos. Mas além dessa somatória de crises nos regimes democráticos nacionais, existe a ideia de um âmbito global da crise da democracia, que reflete também uma crise da governança internacional, e uma incapacidade crônica das instituições internacionais em se fazerem efetivas e democráticas.”

Soberania nos dias de hoje

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Clélio Campolina Diniz, professor e ex-reitor da Universidade Federal de Minas Gerais; Clemente Ganz, das Centrais sindicais; Ladislau Dowbor, economista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; e Luiz Carlos Bresser Gonçalves Pereira, do Centro de Economia Política e ex-ministro da Ciência e Tecnologia.

A segunda mesa-redonda, intitulada “Democracia e Modelo de Desenvolvimento: Ciência, Soberania e Inclusão”, foi coordenada por Clemente Ganz, das Centrais sindicais, além de contar com as participações dos ex-ministros Clélio Campolina Diniz, professor e ex-reitor da Universidade Federal de Minas Gerais; e Luiz Carlos Bresser Gonçalves Pereira, do Centro de Economia Política e ex-ministro da Ciência e Tecnologia; e de Ladislau Dowbor, economista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

“Essa mesa tem como objetivo fazer uma reflexão entre a democracia e o desenvolvimento, olhando para a dimensão dos desafios da Ciência, da Soberania e Inclusão. Nós olhamos para o futuro e estamos vendo agora um conjunto de transformações em um processo muito acelerado. Transformações tecnológicas, transição ambiental, transição demográfica, transição geopolítica e comercial e, nesse sentido, uma transição da democracia, como foi abordado até na mesa anterior”, explicou Clemente Ganz em sua abertura.

Iniciando as falas, Bresser Pereira abordou reflexões sobre soberania. “Se nós queremos desenvolvimento econômico, nós queremos soberania. Se nós estamos com a economia brasileira semiestagnada desde 1990, é uma questão de soberania. Eu chamo de quase estagnação este período que vai até os dias de hoje, porque o Brasil passou a crescer a uma taxa inferior aos Estados Unidos, de forma que a diferença de crescimento entre esses países não foi suprida, o que vinha acontecendo relativamente entre 1930 e 1980. E eu atribuo isso à falta de soberania.”

Para o ex-ministro, soberania e democracia são indissociáveis. “Em 1800, a soberania era a gente se ver livre do império português, que o Brasil se tornasse independente. Isso aconteceu em 1822. Mas se nós perguntássemos o que era soberania em 1929, a gente dizia que era ter um projeto nacional, e nós não tínhamos projeto algum, nós estávamos inteiramente submetidos à cultura e à dominação cultural da França, Inglaterra e já dos Estados Unidos. Passou-se um tempo, nos tornamos independentes, mas só nos tornamos democráticos em 1985.”

Já o economista Ladislau Dowbor olhou para o tempo presente e a preocupação com a era da informação. “A Revolução Digital é, no mínimo, tão profunda quanto a Revolução Industrial, mas com mudanças mais profundas e mais aceleradas. A transformação é geral. Pela primeira vez no planeta, nosso problema não é econômico, é de organização política e social, de pensar em como a gente se gere como planeta.”

Encerrando as falas do dia, o ex-ministro da Ciência, Clélio Campolina Diniz trouxe percepções acerca da democracia. Em suas ponderações, ele olhou para a ascensão americana e para, nos dias de hoje, o crescimento da China – e como o Brasil deve se posicionar a respeito.

“Democracia pressupõe igualdade de direitos e de obrigações, portanto isso implica em um modelo de desenvolvimento que tem que ser necessariamente inclusivo, solidário e soberano. Não são coisas simples de serem resolvidas, a questão da soberania é um desafio. Nós estamos vivemos um período de possibilidade de transição de crescimento econômico, a ascensão asiática. Não é simples, o dólar continua sendo a moeda de referência mundial, sua substituição é possível, mas tecnicamente difícil. Em segundo lugar, o centro hegemônico até hoje, os Estados Unidos, ainda têm o mais poderoso exército do mundo, o que também conta. O grande desafio brasileiro, nesse contexto, é construir sua soberania para que possa fazer uma política econômica de natureza nacional. Nós temos que resgatar os princípios da autonomia da Nação e, para isso, temos que ter autonomia cambial, autonomia monetária e tributária.”

Presidente da Finep, Luiz Antonio Elias participou em vídeo e encerrou as atividades do dia. “Estamos em novo posicionamento político do Sul-Global e o Brasil precisa se preparar. Assumindo não só o domínio, mas o protagonismo de aplicações de tecnologia, e seu benefício para a sociedade”, concluiu.

O evento “Democracia, Ciência e Soberania” está disponível na íntegra no canal da SBPC no YouTube.

Rafael Revadam – Jornal da Ciência