Reconhecido como instrumento fundamental para a democracia e a comunicação científica, o Jornalismo ainda padece de um modelo operacional sustentável para enfrentar um ambiente carregado de notícias falsas e negacionismo. É o que se depreende da análise dos especialistas que participaram da mesa-redonda “Fluxo do Ecossistema de Desinformação”, realizada terça-feira (15/7) dentro da programação científica da 77ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Coordenada pelo professor titular de Bioquímica e ex-reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Carlos Alexandre Netto, a mesa-redonda contou com a participação de representantes de instituições que apoiam o Jornalismo no combate à desinformação: os jornalistas Ana Paula Morales, sócia e fundadora da Agência Bori, e Daniel Stycer, editor do site especializado em ciência The Conversation Brasil; a Assistente Social Taina de Paula Alvarenga, da Redes da Maré, e a consultora Natasha Felizi, do Instituto Serrapilheira.
O objetivo do encontro foi debater a influência das redes sociais na produção, disseminação e consumo de informação no campo científico e os caminhos para combater a desinformação.
Abrindo o debate, Carlos Alexandre Netto analisou que foi a ciência e suas aplicações na tecnologia que tornaram a informação acessível ao conjunto da sociedade. “Foi a partir da popularização dos dispositivos móveis que o conhecimento passou a estar disponível em tempo real e de forma acessível”, analisou Netto.
Mais recentemente, contudo, essa facilidade de acesso à informação resultou em um mundo hiperconectado e perturbador, especialmente para crianças e adolescentes. Para Netto, um dos maiores desafios nesse mundo de quantidades massivas de informações é o pressuposto simplório de que aquilo que está disponível na rede é, a priori, verdadeiro.
Em sua exposição, Natasha Felizi constatou que há um desafio existencial dos veículos tradicionais de comunicação que padecem, há mais de duas décadas, com dificuldades de tráfego e perda de faturamento com publicidade para as plataformas de redes sociais, situação agravada com o avanço da Inteligência Artificial (IA).
“Existem alternativas a essa massificação total das plataformas e a gente precisa enxergar valor em tudo isso, como indivíduos e como sociedade”, comentou Felizi.
A quantidade e rapidez da informação também dificultam a produção de informação de qualidade capaz de rebater as falsas, acrescentou Daniel Stycer, do The Conversation. “O desafio para as mídias tradicionais é essa briga por atenção que tem se intensificado com o TikTok, YouTube ganhando mais popularidade”, comentou Stycer. A concorrência com aquelas plataformas prejudica a monetização dos conteúdos produzidos pelos veículos de comunicação.
“Também a leitura cada vez mais superficial também de notícias nos smartphones e outras telas, afeta tanto os sites tradicionais ligados aos grandes veículos quanto para nós, um site de jornalismo científico”, completou.
Alternativas
Entre estas alternativas analisadas por Natasha Felizi estão reportagens colaborativas, novos modelos de negócio ou políticas públicas de fomento porque “reportagem investigativa custa caro”. Ela falou do Instituto Serrapilheira, instituição sem fins lucrativos criada para fomentar a pesquisa e divulgação científicas e que tem, entre os projetos apoiados, o Ciência Suja, um podcast criado para investigar médicos que receitaram cloroquina na pandemia.
Desde experiências como estas, Felizi opinou sobre a necessidade de pensar o Jornalismo menos como produto final e mais como “código fonte”. “Isso significa que a produção jornalística não pode ficar restrita a um formato só porque nem sempre o que funciona em um canal, funciona no outro e precisamos encontrar o público onde ele está consumindo a notícia”, explicou.
O Serrapilheira tem testado modelos colaborativos em que o conteúdo de uma investigação jornalística é distribuído por meio de vários canais (podcasts, revistas, jornais, portais e influenciadores) que não envolvem publicidade. “Temos achado que essa é uma forma de fazer render os recursos para financiar a reportagem investigativa que é cara, não dá mais pra publicar em um único veículo”, disse a consultora.
Para a organização Redes da Maré, o combate à desinformação traz desafios potencializados pela falta de apoio do poder público e o racismo estrutural, como se depreende do relato de Tainá de Paula Alvarenga. Organização da sociedade civil que nasceu da mobilização comunitária nos anos 90, a Redes da Maré tem como missão garantir os direitos da população residente nas 15 favelas que compõem o complexo da Maré, que tem mais de 140 mil habitantes.
A metodologia de ação da organização passa por mobilização, articulação em rede e parcerias, incidência nas políticas públicas, diagnóstico e produção de conhecimento sobre a região tendo a comunicação como uma das ações estratégicas. Nesse contexto é que Alvarenga explicou como enfrenta a desinformação.
“A nossa comunicação institucional e comunitária perpassa campanhas”, explicou Alvarenga, tomando como exemplo a de vacinação durante a pandemia de covid-19, quando, em parceria e articulação com a Fiocruz, foram vacinadas mais de 34 mil pessoas na campanha Vacina Maré.
Para driblar as fake news e o negacionismo contra o imunizante que prevaleciam na época, as equipes foram de porta a porta em uma grande mobilização, monitorando os resultados e impactos da vacinação no universo de moradores, no decorrer do tempo. “Isso foi um marco para o nosso trabalho e um marco também de constituição do eixo direito à saúde, que até então ainda não estava consolidado”, disse Alvarenga.
Pesquisa
A desinformação e seus impactos sobre a sociedade têm atraído cada vez mais a atenção de pesquisadores de todos os campos do conhecimento, relatou Ana Paula Morales, da Agência Bori, criada em 2020 para apoiar a cobertura jornalística da ciência produzida no Brasil. Em sua exposição, Morales falou do trabalho da agência e apresentou dados preliminares de um relatório próprio apontando que, de 2015 a 2024, foram produzidos quase 168 mil artigos científicos em todo mundo sobre desinformação, fake news e negacionismo, número que praticamente triplicou desde a pandemia. Os Estados Unidos são a origem de um terço dessa produção, enquanto o Brasil ocupa a 11ª posição.
Morales defendeu que a divulgação científica é essencial para combater a desinformação. “Temos que tornar o conhecimento científico acessível para que chegue nas pessoas e em quem pode usar aquilo para tomar uma decisão, fazer uma política pública ou, se for o caso, a pessoa individualmente decidir se vai tomar uma vacina ou não, se vai dar vacina no filho ou não, mas sempre baseado em evidência científica”.
Janes Rocha – Jornal da Ciência