O papel da universidade pública no desenvolvimento da ciência e tecnologia, da educação e do conhecimento foi tema de seminário na Câmara dos Deputados, realizado pela Comissão de Ciência e Tecnologia, em parceria com a Comissão de Educação, nos dias 29 e 30 de outubro. No decorrer dos dois dias, os participantes apresentaram uma série de dados e informações que enfatizam a importância da autonomia das universidades públicas e dos investimentos em educação.
Segundo a deputada Margarida Salomão (PT-MG), que propôs o debate, os cortes de recursos das universidades federais, ameaças de fechamento de institutos federais e a proposta do Governo Federal para o Programa Future-se exigem intenso diálogo por parte do parlamento, da sociedade civil e do governo federal. “Se não olharmos para a nossa ciência e tecnologia, nós não estaremos olhando para o nosso projeto de futuro”, afirmou.
A deputada defendeu a manutenção da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) como entidades separadas e ligadas cada uma ao respectivo ministério que as abriga. “A história da universidade brasileira é recente, a universidade brasileira é tardia entre as nações do ocidente. É importante destacar que a Capes e o CNPq são uma construção que atravessaram governos que tiveram, inclusive na época dos governos militares, apoio”.
Para Fernanda Sobral, vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), os dados levantados no evento mostram o quanto as universidades contribuíram e contribuem para o desenvolvimento social e econômico no Brasil. “Temos vários exemplos de impacto socioeconômico da ciência e tecnologia brasileiras, muitas vezes, em cooperação com institutos de pesquisa e empresas. Entre os exemplos, temos a agricultura, a produção animal, automação, aeronaves, políticas públicas. Esta última com contribuição das ciências humanas, que têm dado subsídios para as políticas públicas como as cotas”, comenta.
Sobral ressaltou ainda que o sucesso da CT&I brasileira só foi possível porque existem a Finep, a Capes e o CNPq atuando separadamente, cada uma com a sua função. “A Finep trabalhou mais com inovação, mas ela teve papel importantíssimo na consolidação da infraestrutura de pesquisa das universidades”, disse. “Esses dados deixam claro o quanto as universidades brasileiras são boas, mas que é preciso seguir modernizando para acompanhar as mudanças do mundo”, explica ao lamentar os bloqueios de quase 18 mil bolsas neste ano, sendo 9842 do CNPq e 8050 da Capes.
Edward Madureira Brasil, vice-presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), ressaltou que muitas vezes a universidade não é compreendida por causa da sua complexidade, pois além da formação de profissionais qualificados, as universidades federais produzem ciência, tecnologia e inovação, fundamentais para o crescimento do País, e auxiliam, de forma decisiva, na superação das desigualdades regionais. Essas instituições possuem também uma rede de equipamentos públicos e serviços que atendem à população nas mais diversas áreas, incluindo museus, teatros, agências de inovação, incubadoras de empresas, hospitais universitários, entre outros. “Esses serviços são importantes para toda a sociedade. E prescindir dessa força é, no mínimo, insano. O nosso sistema não se compara com nenhum outro no mundo, com doutores, laboratórios, distribuídos por todo o Brasil. Em 2003 eram 152 campi. Em 2016 saltou para 334. Hoje esse sistema padece com a questão orçamentária”, disse.
Roberto Salles, ex-reitor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e um dos membros da Comissão Especial destinada a estudar e debater a educação superior no País, também abordou as contribuições das universidades e das instituições de educação, e ressaltou que é preciso liberdade. “A universidade tem que ter a liberdade de colocar vários temas para discussão. A universidade representa a diversidade da população”.
Para Salles, a educação é um projeto de estado e não de governo. O ex-reitor defendeu que mesmo sendo muito jovens, as universidades brasileiras estão à frente de muitas universidades mais antigas de países europeus que contam com mais investimentos. “Toda a força tecnológica do Brasil é proveniente das universidades públicas”, exaltou Salles, lembrando a importância das universidades públicas na resposta ao desastre ambiental decorrente do vazamento de óleo.
Ao falar sobre o futuro, a vice-presidente da SBPC citou que, além dos cortes, as universidades têm outros desafios, presentes e futuros. “Todos os dias as universidades precisam fazer escolhas para o futuro, têm de trabalhar a partir de tendências internacionais em ciência e tecnologia na fronteira do conhecimento. E têm ainda as colaborações para o desenvolvimento de áreas estratégicas nacionais, para o atendimento de necessidades regionais e locais ou o atendimento de problemas emergenciais”, explicou Sobral.
Olhar para o passado também é parte dessa construção, diz Sobral. “Vemos que é preciso preservar o modelo intelectual, que historicamente norteou a vida acadêmica e que defende a universidade como espaço social e intelectual, sui generis, no qual professor e estudantes cultivam deforma apaixonada o conhecimento e procuram preservá-lo como substância a priori”.
Para Carlos Alberto Marques, membro do Comitê Executivo do Observatório do Conhecimento, falar sobre perspectiva da universidade brasileira, é falar de algo urgente e conjuntural para garantir sua sobrevivência, de financiamento público e condições para continuar funcionando, além de sua autonomia.
Marques fez ainda uma severa crítica ao citar o programa Future-se, que para ele sinaliza o abandono dos investimentos públicos em pesquisa e desenvolvimento do País. “O Future-se vai reduzir a instituição ao direcionar o trabalho acadêmico apenas para um setor da sociedade e atrofiará as demais áreas da ciência, que se resumirá a prestação de serviços. Sinaliza o abandono dos investimentos públicos em pesquisa e desenvolvimento do País, tornando-o ainda mais vulnerável e dependente da compra de produtos alto valor agregado”, afirma. Para Marques, sem financiamento, não há autonomia e “é por meio do financiamento que o governo pretende controlar as universidades”, disse.
Autonomia
Na opinião de Maria Emília Walter, decana de Pesquisa e Inovação da Universidade de Brasília (UnB), é fundamental garantir a autonomia universitária para que a universidade possa se manter como centro de criação e inovação. Segundo a decana, o investimento em inovação garantiria a sustentabilidade de um país, como demonstram os exemplos da Alemanha e dos Estados Unidos, onde a maior parte dos investimentos são públicos. “A interface entre universidade e sociedade precisa ser fortalecida e o setor privado precisa entender que não se trata de contratar um serviço, mas de investir no futuro”, disse. Ela também ressaltou a necessidade de um entendimento maior sobre o que significa o conceito de Inovação e apresentou as iniciativas da UnB relativas à inovação, à internacionalização e à produção científica, destacando a sua excelência.
Ao analisar a complexidade da estrutura universitária na contemporaneidade, Luiz Antonio Cunha, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), disse que o que une a universidade no tempo e no espaço, é a sua luta pela autonomia e a possibilidade de produzir e difundir conhecimento, sem restrições ideológicas e dogmáticas sejam elas da igreja, do estado, do partido ou do mercado. Cunha disse que há uma resistência atávica do estado brasileiro em reconhecer a autonomia universitária, mesmo quando garantida pela Constituição. Atualmente, a primazia das leis de mercado também ameaça a autonomia universitária ao colocar o lucro na frente do conhecimento, constrangimento que seria a base do projeto Future-se, do atual governo federal. Na opinião de Cunha é um equívoco reduzir a universidade ao mero mecanismo de acumulação de capital físico ou financeiro. Para ele, o ensino, a pesquisa, a assistência e a extensão passaram a ser definidos como mercadorias, vendáveis ou não. “A valorização deste critério coloca em risco a autonomia universitária, pois os interesses empresariais são distintos dos acadêmicos”, afirmou.
A reitora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Sandra Almeida, lembrou que os ataques às universidades públicas têm se dado em vários níveis. “Temos sofrido agressões não apenas no campo material, com restrições orçamentárias, mas também no campo simbólico, com informações infundadas, dados inverídicos, usados de má fé. As universidades têm papel importantíssimo. São a solução, e não problema. Solução para um país que quer ser desenvolvido e equânime. A solução está no investimento contínuo e sustentável nas universidades”, disse.
Dados
Helena Nader, vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e presidente de honra da SBPC, reafirmou que ciência e educação não representam gastos para o País. Nader elogiou as políticas para o desenvolvimento do sistema nacional de pós-graduação entre 2010-2018, que democratizaram e ampliaram a produção científica em todo o Brasil. Segundo ela, a mídia utiliza de maneira equivocada as estatísticas para desqualificar a universidade muitas vezes. “Os jornais de grande imprensa disseram que o Brasil publica muito, mas sem impacto. É preciso olhar os números. Em 2011, o nosso impacto era 0,73 e em 2016 passamos para 0,86. O Brasil está na frente da Rússia, potência mundial durante vários anos, mostrando que é fundamental investigar os índices a fundo”, disse.
Quanto aos investimentos, Nader demonstrou em um gráfico que nos EUA os investimentos em ciência e educação são majoritariamente públicos. “Lá, o número de agências governamentais de pesquisa é muito maior, enquanto no Brasil as três agências de fomento (Capes, CNPq e Finep) ainda estão ameaçadas de serem fechadas. Isso a gente não pode permitir.”
Segundo um relatório da União Europeia sobre o valor da pesquisa, citado pela presidente de honra da SBPC, o investimento em pesquisa pública tem um retorno de três a oito vezes do valor aplicado. Além disso, entre 20% e 95% das inovações não poderiam ter sido desenvolvidas sem a contribuição da pesquisa pública.
Nelson Cardoso do Amaral, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), em sua exposição falou da necessidade de pensar o investimento em ciência e tecnologia em relação não só ao PIB do país, mas ao número de habitantes. “Levando esse número em conta, o Brasil investe uma porcentagem muito pequena, por habitante, na área. O investimento em educação, saúde e gastos militares, por habitante, também está bem abaixo da média dos países desenvolvidos”, disse. Ao analisar quais têm sido as prioridades de investimentos do governo federal nos últimos dezoito anos, Amaral afirma que os dados apontam uma restrição aos gastos com saúde e educação desde 2016.
EC 95
Helena Nader criticou ainda a inclusão de educação e ciência no ajuste fiscal realizado através da Emenda Constitucional 95. “A emenda compromete o futuro do Brasil ao priorizar o interesse de um mercado especulativo, que prioriza mão de obra desqualificada e exportação de matéria prima. Os alunos de hoje serão cidadãos, líderes, trabalhadores e pais do amanhã. A educação é investimento com benefícios duradouros”, finalizou.
Vivian Costa – Jornal da Ciência