Dados do National Institute of Mental Health (NIMH, 2012) apontam que 46% dos norte-americanos preenchem os critérios de diagnóstico de um transtorno mental. Na Europa essa porcentagem corresponde a 38%. Nos Estados Unidos, o diagnóstico de transtorno bipolar em crianças e adolescentes aumentou 40 vezes, entre 1994 e 2003, e uma entre cinco crianças tem um surto de transtorno mental por ano, de acordo com dados do Centro de Controle de Doenças, daquele país (CDC, 2013).
Há pesquisas que indicam que 10% da população mundial teria algum tipo de transtorno, um número que segundo a médica pediatra, Maria Aparecida Affonso Moysés, da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), inviabiliza qualquer esforço de política pública. “Temos que começar a questionar como esses números são construídos. Na verdade, mudanças nos critérios do diagnóstico se tornaram muito frouxos nos últimos anos”, afirmou a médica, em sua conferência na Reunião Anual da SBPC. “É muito difícil qualquer um de nós não se encaixar nos critérios. Os testes que detectam algumas dessas doenças são verdadeiras armadilhas”, alertou.
Ela refutou a ideia de que vivemos uma epidemia de doenças mentais. “O que temos é uma epidemia de diagnósticos de transtornos mentais”, disse. Na primeira vez em que foi publicado pela Associação Americana de Psiquiatria, em 1952, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), tinha 106 categorias de transtornos mentais. Em sua última edição, em 2013, foram listadas 300 categorias. “Alterar as normas para caracterização de um transtorno e criar doenças novas contribuíram para essa epidemia amplamente patrocinada pela indústria farmacêutica”, declarou Moysés. “Antes de vender remédios, o departamento de marketing da indústria de fármacos trabalha para vender doenças”, diz. Déficit de atenção, transtorno de descontrole de humor, transtorno de aprendizagem, depressão, transtorno opositor desafiante, hiperatividade, são algumas dessas doenças fabricadas para vender medicamentos. “Onde está a ciência e ética nesse campo?”, questionou a médica. Segundo ela, esses medicamentos são largamente receitados para crianças e adultos, como se fossem 100% seguros, mas boa parte deles provoca dependência química.
Um exemplo é o metilfenidato, base de uma classe de estimulantes do sistema nervoso central, vendido entre outras, com a marca “Ritalina”. O medicamento age inibindo a receptação de dopamina na sinapse, o que teria como resultado o aumento do nível de concentração. Conforme explicou Moysés, ele é receitado para crianças com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), não pelo seu efeito terapêutico, mas pelas reações adversas. No sistema nervoso central o metilfenidato provoca o efeito “zombie like”, quando a pessoa fica contida em si mesma. “Eu comparo esse fármaco a uma droga da obediência porque o indivíduo perde a capacidade de questionar, de sentir. É um tipo de contenção química. O aumento de concentração, tão propagado, é, na verdade, uma redução do foco da atenção, isto é, a pessoa presta atenção em uma coisa de cada vez”, afirmou. “Não existe uma pílula que nos faça prestar atenção. Para isso, precisamos de bons professores com boas condições de trabalho”.
Na opinião da pesquisadora da Unicamp, vivemos em um projeto de sociedade que estimula e premia comportamentos homogêneos, punindo as singularidades. “Não é à toa que assistimos cortes significativos nos orçamentos da ciência e da educação. Temos que ser iguais porque as diferenças incomodam cada vez mais. Entretanto, neutralizar os sonhadores, os que pensam diferente é um genocídio do futuro”, disse.
O combate ao que a médica chama de patologização da sociedade passa pelos campos da saúde, da educação e por uma revisão das políticas públicas para que elas não sejam submissas ao mercado. Outro setor é o da formação profissional. Nas escolas de medicina, a técnica não pode se sobrepor à ética e ao aspecto humano. Toda avaliação e diagnóstico têm que respeitar saberes, valores, história e a cultura porque “a vida não é mercadoria”, finalizou.
Por Patricia Mariuzzo para o Jornal da Ciência