Talvez os Estudos Clássicos (EC) sejam o conjunto disciplinar dos mais antigos ou tradicionais no meio acadêmico. Seus conteúdos interagem de maneira precisa, funcional e produtiva. E são dependentes de duas matrizes: uma documental e outra monumental, a pensar aqui a famosa distinção proposta por Jacques Le Goff[i]. De um lado, assim, temos os textos – documentos – que sobreviveram desde a invenção da escrita grega e latina (ou mesmo antes dessas, a supor o linear B como ponto de partida[ii]) e que dependem de estudos paleográficos, epigráficos e filológicos (retórico-poéticos). E, de outro lado, localizamos a cultura material – monumentos – que compreende tudo aquilo que é material e físico, legado pelos seres humanos como fonte de conhecimento e que deve ser apreendido, ensinado e preservado a fim de assegurar a memória. Os monumentos, enfim, estão sujeitos às avaliações da arqueologia, da antropologia, da história da arte e da sociologia.Ambas as matrizes, textual e material, relacionam-se contextualmente tendo a filosofia e a história como operadoras indispensáveis, uma vez que permitem a compreensão das mentalidades. É lógico que não queremos dizer aqui que a filosofia e a história apenas se articulam instrumentalmente no campo dos EC. Ao contrário, essas disciplinas são essenciais na operação intelectiva das demais áreas, e assim igualmente as perpassam e essas, portanto, dependem daquelas. Ou melhor, todas as áreas de conhecimento nos Estudos Clássicos primam, ao mesmo tempo, por sua capacidade de instrumentalidade, como também cada uma delas pode ser vista de forma central e independente com suas ferramentas próprias. Tentar conhecer a filosofia de Platão ou a política de Cícero sem os respectivos instrumentos linguísticos, ou ainda, ler as tragédias de Sêneca ou a História de Tucídides sem termos em conta a filosofia estoica ou a situação política de Atenas no século V a.C., compromete a qualidade dos EC, de modo que a operação inter-relacional é uma questão fundamental para essas áreas.
A confluência desses conhecimentos pode ser observada a partir de uma visada, digamos, êmica[iii], quando reconstruímos as diversas “ruínas do passado”, ou apenas, tentamos ressuscitar um morto, trabalhando como fundamento o modo próprio de pensar das sociedades passadas (uma formae mentis[iv]) em suas especificidades; ou a partir de um vislumbre ético[v] que recompõe ou reinventa esses diversos passados à luz de seus efeitos nos diversos “presentes”, digamos, nos nossos lugares de fala. Poderíamos assim pensar hoje em categorias como 2019, Brasil, universidades públicas, humanidades, (des)governo de Bolsonaro ou (já) era Trump, que seriam o ponto de partida para a leitura dessas sociedades, desses passados, desses documentos, desses monumentos, enfim, desses mortos[vi]. As categorias éticas colocam os EC no epicentro das pesquisas sobre recepção, pois não há como lhes negar permanência nas sociedades ocidentais, marcadas as descontinuidades que lhes são inerentes.
Assim os EC congregam temáticas, conceitos, eventos, produções do mundo antigo greco-romano, oferecendo uma reflexão sobre esses passados, nos quais as línguas, o grego antigo e o latim, são essenciais. Sob a perspectiva temporal, os Estudos Clássicos, então, operam um enorme espectro sociocultural que se articula contínua e descontinuamente desde o século XII a.C. (pensamos aqui na derrocada do poder micênico)[vii] até talvez a queda de Roma em 476 da nossa era, com Rômulo Augusto, ou a supor uma continuidade e não uma ruptura até 1453 com a vitória de Maomé II sobre Constantino XI. Afora se observarmos a cultura monástica e suas bibliotecas (no Medievo), ou mesmo a circulação de uma literatura ou filosofia em latim, no Renascimento, e daí ampliamos tremendamente o espectro que pode ser abarcado por esses estudos, em chave de recepção e circulação.
Esse universo é também incomensurável sob o ponto de vista geográfico, uma vez que se ocupa a um só tempo da Europa insular e continental, da Ásia Menor, do Oriente Médio e do norte da África e pode ser pensado ou como entendemos como nos provoca ou nos afeta, ou também como se constituiu como passado já perfeito. Nesse sentido, o conjunto de temas, de conceitos, de eventos e de produções relacionados, levianamente citando Foucault – dado que defenderia uma “arqueologia do saber” –, poderia estar situado no limite de uma história das ideias. Já que essa, segundo ele, “é, então, a disciplina dos começos e dos fins, a descrição das continuidades obscuras e dos retornos, a reconstituição dos desenvolvimentos na forma linear da história. Mas ela pode, também e dessa mesma forma, descrever, de um domínio a outro, todo o jogo das trocas e dos intermediários: mostra como o saber científico se difunde, dá lugar a conceitos filosóficos e toma forma eventualmente em obras literárias; mostra como problemas, noções, temas podem emigrar do campo filosófico em que foram formulados para discursos científicos ou políticos; relaciona obras com instituições, hábitos ou comportamentos sociais, técnicas, necessidades e práticas mudas; tenta fazer reviverem as formas mais elaboradas de discurso na paisagem concreta, no ambiente de crescimento e de desenvolvimento que as viu nascerem. Torna-se, então, a disciplina das interferências, a descrição dos círculos concêntricos que envolvem as obras, as sublinham, as unem umas às outras e as inserem em tudo que não é obra”[viii].
A localização dos Estudos Clássicos como área de conhecimento necessariamente inter-relacional a desloca para o centro de uma discussão atualíssima no meio acadêmico: a inter, a multi e transdisciplinaridade. Como entendemos que esses conceitos sejam distintos, é conveniente esclarecê-los a fim de mostrar que os EC neles se inserem. Assim, enquanto a multidisciplinaridade opera mais de uma área do conhecimento trabalhando um determinado conteúdo, cada qual com seus métodos e perspectivas, a interdisciplinaridade se caracteriza pela união de mais de uma disciplina articulando-se num projeto comum, cada uma explorando aspectos relevantes de sua área de conhecimento, quando uma “troca de saberes” torna-se central a fim de ampliar as possibilidades de entendimento sobre um assunto; e, por fim, a transdisciplinaridade, que é tida como novo modo de pensar que foge do método cartesiano de disciplinas estanques, é a integração entre conhecimentos de tal maneira articulados que a própria ideia de disciplina se esvazia dando lugar ao conhecimento sem jugo, sem os grilhões ortodoxos de conteúdo[ix].
Enfim, no limite, trata-se, nos três casos, do modo como diferentes disciplinas se articulam. São formas de integrar diferentes áreas do conhecimento para um propósito comum – como produzir novos saberes, por exemplo. Em quaisquer delas, os Estudos Clássicos se acomodam com destreza histórica.
Uma questão que se impõe hoje não só no Brasil como no mundo é o deslocamento de áreas monolíticas do conhecimento em que apenas a verticalidade do saber e a extrema especialização são valorizadas para a imperiosidade do conhecimento multilateral e da ampliação de seus vetores. Assim, não basta para o mundo globalizado sermos detentores de um saber exclusivo e específico apenas. Ao contrário, quanto mais um determinado conhecimento “conversa” com outros, mais valorizado será o profissional assim formado. A Universidade de São Paulo, por exemplo, desenvolve desde 1991 o curso de Ciências Moleculares, cuja interface reside no limite entre ciências exatas e biológicas e a computação. Esse projeto parece um bom exemplo de institucionalização dessa nova forma de pensar a aquisição de conhecimento. Entretanto, as experiências precisam ser alargadas e agilizadas, para tanto incentivá-las institucionalmente é um mister. E os EC seriam um campo profícuo.
Ainda que esses estejam localizados no campo das humanidades (antropologia, arqueologia clássica, filosofia antiga ou política, letras clássicas, história antiga, sociologia) – seu lugar de conforto –, é indiscutível a importância de outras áreas fora das humanidades. Um bom exemplo é o trabalho realizado por uma pesquisadora do laboratório de nanotecnologia de Roma que construiu um software com a tecnologia do European Synchrotron Radiation Facility (ESRF, Grenoble) com a técnica da tomografia de raios-x com contraste de fase[x] que foi capaz de desenrolar virtualmente os papiros carbonizados pela erupção do Vesúvio em 79 d.C. e nos presentear com a possibilidade de resgate de mais de 1.700 rolos encontrados em escavações no século XVIII na biblioteca de uma residência (Villa dei Papyri) na cidade de Herculano no golfo de Nápoles, uma das quatro cidades desaparecidas com a erupção. Vale dizer que muitos desses textos ainda devem ser inéditos para nós e seu reencontro poderia significar uma verdadeira revolução para quem tem seu ofício relacionado com o mundo antigo. Mas infelizmente essa realidade ainda está muito distante para nós, brasileiros.
Mas é importante dizer que a grande área de Estudos Clássicos, internacionalmente conhecida como Classical Studies (ou simplesmente Classics) ou Études Classiques ou Scienze dell’Antichità, ou Klassiche Philologie, ocupa lugar de relevância nas universidades de classe mundial. Entre as 15 primeiras universidades[xi] do último Time Higher Education (THE), 2018, apenas CalTech, MIT, Imperial College e ETH Zurich não possuem departamentos ou faculdades que se debrucem sobre os EC. Porém, não devemos tomar apenas a excelência indicada por esse ranking. Na França (Paris-Sorbonne ou École Normale Supérieure entre muitas outras), na Itália (La Sapienza, SNS Pisa e em quase todo o sistema de ensino superior e médio), na Alemanha (Freie Universität Berlin, Heidelberg Universität e outras tantas), no Canadá (University of Toronto), em Portugal (Universidade de Lisboa e de Coimbra), Espanha (Universidad Complutense Madrid) e na África do Sul (University of Cape Town), em todos esses países e em outras centenas, os EC estão cobertos por uma estrutura institucionalizada seja em nível de graduação, seja em nível de pós-graduação, ou em ambos. Donde nós no Brasil estamos absolutamente fora de um padrão internacional, uma vez que ainda não temos uma estrutura como essa, embora em muitas universidades brasileiras estivéssemos aparelhados para tanto.
Ainda que os Estudos Clássicos se ocupem da Antiguidade Clássica greco-latina, suas relações com outras civilizações são importantíssimas, donde os estudos mesopotâmicos, a cultura sânscrita, a egiptologia, línguas como o hitita, o aramaico, o pársi, o copta, etc. compreendem uma interface que também pode e deve ser considerada. Na USP, Unesp, Unicamp, UFRJ, UFF, Ufop, UFMG e em muitas outras universidades federais, embora tenhamos importantes polos irradiadores de EC, eles se mantêm estanques e desunidos numa estrutura acadêmico-administrativa. Na USP, especificamente as línguas e literaturas grega e latina estão no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, História Antiga no Departamento de História, Filosofia Antiga no Departamento de Filosofia, Arqueologia no Museu de Arqueologia e Etnologia. Enfim, essa estrutura difusa dificulta a relação institucional diante de uma unidade historicamente construída. Assim há um espaço importante para nos unirmos em torno de uma área multi, inter, transdisciplinar em nível de graduação, ou de pós-graduação ou em ambos como ocorre fora do Brasil, de sorte a nos inserir em contexto mundial.
Curiosamente, nesse sentido, vivenciamos um paradoxo. No Brasil, nos anos 1980, foi fundada uma sociedade científica que congrega todas essas áreas que se mantêm desunidas nas universidades, a Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC)[xii], que é associada à Fédération Internationale d’Études Classiques (FIEC)[xiii], que conta com nada mais nada menos que 60 associações nacionais[xiv]. Hoje essa nossa sociedade possui mais de 500 sócios e realiza de dois em dois anos seu congresso nacional e suas eleições. Mantém estreita relação com a SBPC e com o fórum de entidades científicas, pronunciando-se em nome da área nacional e internacionalmente. Diante desse quadro, acreditamos ser imperiosa a discussão sobre construção dessa área, curso de pós ou departamento na USP, a fim de que apresentemos à sociedade essa experiência inovadora no Brasil e estabeleçamos uma interlocução mais sólida sob a perspectiva institucional com as grandes universidades de classe mundial.
[i] Cf. J. Le Goff, História e memória, Campinas, Editora da Unicamp, 1996.
[ii] Tipo de escrita micênica (séculos XV-XII a.C.), descoberta em 1886 por Sir Arthur Evans e decifrada por John Chadwick e Michael Ventris em 1950.
[iii] Conceito da antropologia cultural que supõe o ponto de vista do grupo social observado. Cf. C. Kottak, Mirror of humanity, New York, Mc Graw-Hill, 2006.
[iv] Maneira de pensar.
[v] Conceito da antropologia cultural que supõe o ponto de vista do observador do grupo social. Cf. C. Kottak, op. cit.
[vi] Cf. M. De Certeau, A escrita da história.
[vii] Cf. J.-P. Vernant, As origens do pensamento grego, São Paulo, Difel, 1984.
[viii] M. Foulcault, A arqueologia do saber, Rio de Janeiro, Forense Universitária.1995.
[ix] Disponível em: https://canaldoensino.com.br/blog/multidisciplinaridade-interdisciplinaridade-e-transdisciplinaridade-diferencas-e-convergencias.
[x] Disponível em: https://www.bbc.com/news/magazine-25106956.
[xi] 1) Oxford (https://www.classics.ox.ac.uk/home), 2) Cambridge (https://www.classics.cam.ac.uk/), 3) Harvard 4) CalTech, 5) Stanford (https://classics.stanford.edu/), 6) MIT, 7) Princeton (https://classics.princeton.edu/department/about/overview), 8) Imperial College, 9) University of Chicago (https://classics.uchicago.edu/), 10) ETH Zurich, 11) University of Pennsylvania (https://www.classics.upenn.edu/), 12) Yale University (https://classics.yale.edu/), 13) Johns Hopkins University (https://classics.jhu.edu/), 14) Columbia University (http://classics.columbia.edu/) e 15) UCLA (https://classics.ucla.edu/).
[xii] Disponível em: https://www.classica.org.br/.
[xiii] Disponível em: https://www.fiecnet.org/.
[xiv] Disponível em: https://www.fiecnet.org/our-story.