A falta de recursos para a continuidade da pesquisa científica no Brasil, especialmente a pesquisa básica conduzida pelas universidades públicas, tem sido amplamente denunciada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e outras proeminentes entidades civis do País há anos. Porém, próximo ao término de 2022, o quadro da execução orçamentária do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) revela o quanto a situação tornou-se dramática, agora colocando em risco a própria existência de unidades da Pasta.
De acordo com os dados oficiais sobre o orçamento do MCTI, 74,91% dos recursos disponíveis até 3 de outubro de 2022 estavam devidamente empenhados, ou seja, comprometidos com a execução em cada programa ou atividade da Pasta. O valor mostra que a execução estaria num compasso adequado em relação ao calendário anual, mas esta percepção oculta problemas sérios no fluxo de recursos para as atividades finalísticas do Ministério.
Estudo realizado pela Assessoria Parlamentar da SBPC revelou situações preocupantes sobre o funcionamento do MCTI em 2022 e o sufocamento fiscal infligido à Pasta pela política econômica adotada pelo governo federal.
MP 1.136/22 e um corte bilionário
O primeiro problema é que os dados públicos ainda não revelam uma perda de mais de R$ 1,7 bilhão no Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), causada pela edição da Medida Provisória n° 1.136, de 2022. Esta MP, contrariando a Lei Complementar n° 177, de 2021, que impede a restrição orçamentária de qualquer espécie do FNDCT, foi editada em 29 de agosto limitando o uso do fundo a R$ 5,555 bilhões em 2022. Este valor é destinado tanto à cobertura dos programas financiados com recursos não reembolsáveis (parcela orçamentária do fundo) quanto aos financiamentos a juros destinados a empresas (parcela financeira).
“Se houve uma divisão igualitária do limite, a parcela orçamentária teria disponível R$ 2,777 bilhões disponíveis apenas. Considerando esta limitação legal, o empenho do FNDCT já estaria em 90%”, aponta o estudo da SBPC. Além dos recursos do Fundo já estarem completamente alocados considerando os efeitos da MP, este impacto também altera o resultado da alocação total da própria Pasta, haja vista o enorme peso que o FNDCT possui sobre o orçamento do MCTI, correspondente a 45% do total da verba ministerial.
Sendo assim, considerando a perda de R$ 1,75 bilhão gerada pela MP, o MCTI já teria comprometido na verdade 90,65% dos recursos realmente disponíveis para a ciência em 2022. E isto restando três meses para o fim do ano. Neste cenário, o FNDCT, por exemplo, não teria mais nenhum recurso para alocar em 2022 a partir de 3 de outubro.
Neste cenário, a maior parte dos fundos setoriais teve menos da metade das verbas empenhadas. Oito deles, não chegaram a comprometer nem 25% do orçamento autorizado pela LOA. O CT-Amazônia e o Reator Multipropósito não receberam nem um centavo dos recursos destinados originalmente no orçamento. E, mantido o corte de recursos imposto pela MP 1.136/22, os aportes estão encerrados para este ano.
“O orçamento destinado ao MCTI já está em vias de esgotamento. Os recursos do FNDCT, ao final do terceiro trimestre, estão praticamente todos empenhados. Então, não há mais recursos para empenho do FNDCT no último trimestre do ano”, refletiu o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, em audiência na Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT) do Senado Federal citando o estudo. “Eu compararia essa situação a se dizer que não temos mais como dar comida para as pessoas, como cuidar das crianças. É não termos o mínimo para a sobrevivência do nosso sistema científico e tecnológico.”
Dúvidas sobre as bolsas
O estrangulamento das verbas destinadas ao MCTI tem colocado os programas e até mesmo as próprias unidades vinculadas à Pasta em risco. Dois casos preocupantes ocorrem no CNPq e na AEB, de acordo com a análise da SBPC.
As limitações dos recursos destinados a bolsas de pesquisa científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) têm prejudicado a expansão do financiamento dos cientistas nos últimos anos. Em 2019, inclusive, houve risco de atraso no pagamento das bolsas, exigindo a atuação do Congresso Nacional para assegurar verba suficiente para o cumprimento dos compromissos. Agora, os dados do CNPq revelam nova preocupação sobre a capacidade do Conselho de financiar as bolsas concedidas.
De acordo com as informações analisadas, foram retirados do programa de pagamento de bolsas do CNPq nada menos que R$ 47 milhões, reduzindo a verba total para R$ 908,9 milhões em 2022. Não há nenhuma justificativa formal para este corte. Além disso, 98,88% dos recursos agora disponíveis já foram comprometidos até 3 de outubro e o fluxo de liquidação e pagamento das bolsas está na casa dos 50%.
Isso traz dúvidas se o CNPq possui verba para honrar as bolsas de dezembro e janeiro, uma vez que tradicionalmente o órgão empenha os recursos em um fluxo para assegurar o pagamento do mês vindouro e não a totalidade de uma única vez. É possível que o CNPq tenha mudado sua gestão e passado a comprometer a totalidade dos recursos até o fim do ano. Ainda assim, o fluxo de pagamento, com apenas 52% pago, causa preocupação nesta hipótese. Não há nenhuma informação no momento que ateste atraso no pagamento das bolsas, mas um cenário de preocupação com a capacidade de honrar com os compromissos após um grande corte nos recursos.
Sucateamento
Sinal de alerta também na Agência Espacial Brasileira (AEB). Com o pior orçamento desde 2004, a AEB dispunha apenas de R$ 142,078 milhões em 3 de outubro, data do levantamento dos dados usados pela SBPC no estudo, após um corte acumulado de R$ 25,004 milhões do valor originalmente aprovado pelo Congresso Nacional na Lei Orçamentária Anual (LOA). Nesta quarta-feira, 26, o Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP) aponta uma perda ainda maior de recurso da agência, com um corte acumulado de R$ 51,087 milhões e um orçamento atual de R$ 115,995 milhões.
Apenas com os números gerais do orçamento, verifica-se que não há verba suficiente sequer para a manutenção da AEB. A título de comparação, o auge do orçamento da agência ocorreu em 2012, com R$ 407,536 milhões à época. Atualizando o valor pelo IPCA acumulado, o valor seria R$ 732 milhões, expondo ainda mais o tamanho da perda real no orçamento atual.
Mas não se trata apenas de cortes no volume de recursos autorizado. A própria agência tem tido um fluxo de execução muito baixo, sinal de que o sucateamento já está paralisando as atividades concretas da autarquia. Os dados apontam que o nível de empenho da AEB está em 55,68% finalizado o terceiro trimestre. Ou seja, mesmo com o baixíssimo orçamento ainda é possível que a agência chegue ao fim do ano sem conseguir gastar todos os recursos. Isso deixa claro que a AEB está sendo desmontada pelo governo federal e que os efeitos do corte de recursos realizado pelo governo federal estão comprometendo o próprio funcionamento da estrutura de ciência e tecnologia do País.
Veja neste link o estudo da SBPC sobre a Execução Orçamentária do MCTI em 2022.
Jornal da Ciência