O bloqueio de aproximadamente R$ 1,8 bilhão previsto para o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) mostra que, mesmo com o papel essencial que a ciência teve para a tomada de decisões durante a pandemia da covid-19, o Governo Federal ainda tem dificuldades de reconhecer a importância do setor no desenvolvimento do País. Para cientistas, a emenda constitucional do teto de gastos (EC 95) faz com que as verbas governamentais sejam repassadas de uma área a outra incessantemente, inviabilizando o desenvolvimento de setores importantes como Saúde, Educação, e a própria CT&I.
“A emenda constitucional do teto de gastos tem um efeito muito perverso porque ela faz com que os gastos públicos concorram entre si e que se precise tirar da Educação para investir em Ciência e Tecnologia, depois tirar da Ciência e Tecnologia para investir em Saúde, tirar da Saúde posteriormente e assim criar um ciclo. E não podemos cair nessa armadilha, temos que defender investimentos em todas essas áreas”, alerta Tatiana Roque, professora e coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Considerando as análises orçamentárias do MCTI realizadas pela SBPC (Sociedade Brasileira para o Processo da Ciência) – e disponíveis para consulta ao público -, o Ministério estaria autorizado a empenhar até R$ 6,8 bilhões em despesas discricionárias, que são aquelas ligadas aos gastos públicos em que o Governo Federal pode decidir quanto e como gastar. Entretanto, desses R$ 6,8 bilhões destinados ao MCTI, a equipe econômica garantiu o pagamento de apenas R$ 5 bilhões, o que vai gerar o bloqueio de R$ 1,8 bilhão.
“Como é que funciona o orçamento? Primeiramente, o poder Executivo no ano anterior encaminha um projeto de lei para o Congresso Nacional falando o seguinte: ‘olha, para o ano que vem eu vou querer utilizar a verba x para a ciência e tecnologia’. Na realidade, isso acontece em todos os ministérios. Então, o Congresso Nacional aprova e vira Lei Orçamentária. Mas uma vez que você tenha na Lei Orçamentária, por exemplo, que o MCTI terá R$ 1 ou 2 bilhões, isso não significa que o dinheiro virá automaticamente para o Ministério, porque isso é feito por etapas. No começo do ano seguinte, o Ministério da Economia indica os valores que podem ser empenhados por cada ministério, o que em geral é 1/12 da verba anual, e mesmo que haja esse limite de empenho e que os ministérios empenhem o total dos valores indicados, não significa que a Pasta vá entregar todo esse valor no final. Isso tudo para dizer que essas peças orçamentárias se tornaram tão complexas que o Governo Federal segura as verbas de várias formas”, explica Alvaro Toubes Prata, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro da Diretoria da Academia Brasileira de Ciências (ABC).
A análise orçamentária realizada pela SBPC também identificou que esse bloqueio de R$ 1,8 bilhão atingirá diretamente os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), o que é ilegal, já que a verba do Fundo é protegida por lei. Entende-se que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações não dispõe imediatamente desse valor e terá que recorrer ao FNDCT para conseguir manter suas atividades em funcionamento. Além disso, são estimados novos bloqueios no Ministério, que devem chegar ao montante de R$ 2.926.128.000,00, sendo R$ 2,5 bilhões a serem retirados só do FNDCT – isso representará uma queda de 44,76% nos recursos aprovados do Fundo em comparação com o orçamento liberado em 2021.
Para o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, há ainda a preocupação de que bloqueios e cortes possam atingir outras pastas estratégicas para a ciência brasileira, como o Ministério da Educação (MEC) e o Ministério do Meio Ambiente (MMA). “Não é possível buscar o desenvolvimento do País em um ambiente de evidente perseguição ao conhecimento”, destaca.
Janine Ribeiro conclui que os cortes já anunciados pelo Governo Federal juntamente a essa redução ao MCTI colocam o Brasil em um panorama emergencial. “O corte substancial no orçamento da Educação, além de várias outras áreas, somado às ameaças que pairam sobre o orçamento da Ciência e Tecnologia, deixam o futuro do Brasil hipotecado, porque sabemos, cada vez mais, que a retomada da própria atividade econômica, na qual o Governo Federal insiste tanto, bem como a construção de uma sociedade mais justa e solidária, dependem muito do conhecimento rigoroso, ou seja, da ciência, da cultura e da educação.”
Presidente do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap), Odir Dellagostin alerta que as demais entidades em prol da ciência têm se organizado para tentar suprir os efeitos dos cortes federais, mas há piora da situação, já que a falta orçamentária tem chegado a cada vez mais setores.
“Nos últimos cinco anos, tivemos orçamentos decrescentes das agências federais. Este ano tínhamos a expectativa de que conseguiríamos recuperar, pelo menos em parte, a redução nos investimentos em CT&I que ocorreu ainda no Governo Temer, mas se acentuou no Governo Bolsonaro. As Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa, em diversos estados, têm conseguido compensar, pelo menos parcialmente, os cortes orçamentários das agências federais, porém, mesmo nos estados onde as FAPs contam com orçamentos mais robustos, a crise no financiamento por meio das agências federais está causando severos impactos. A queda na quantidade e na qualidade da produção científica e tecnológica deixará o País ainda mais atrasado”, pontua.
MCTI minimiza impacto dos bloqueios federais
Em audiência pública realizada na última quinta-feira (02/06) na Câmara dos Deputados para debater a situação do financiamento à CT&I no Brasil, o secretário-executivo do MCTI, Sérgio Freitas de Almeida, confirmou o bloqueio de recursos do setor, mas minimizou o cenário ao alegar que se trata de uma medida temporária.
“Vocês todos já devem ter recebido informações a respeito dos bloqueios que o Governo Federal está promovendo em toda a Esplanada. Isso não se refere apenas ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Todos os ministérios foram impactados com esse bloqueio que ainda não foi oficializado, mas já foi informado às unidades do governo. E a gente destaca o seguinte: isso se trata de bloqueio, não é contingenciamento, nem cancelamento. No caso do FNDCT é, inclusive, proibido, vedado o contingenciamento de recursos por força da Lei Complementar nº 177/21, que foi aprovada no ano passado. Então, esse bloqueio que está sendo discutido hoje, aqui no Governo Federal, é um mero impedimento da emissão de notas de empenho. A nossa visão é de que isso é temporário e vai ser recomposto ao longo do exercício”, afirmou.
Almeida conclui que tal bloqueio orçamentário só terá impacto se seguir até o último mês da gestão governamental, ou seja, em dezembro, e destacou que a ausência de verbas não está afetando o andamento dos programas do MCTI, informações que foram rebatidas na própria audiência pública.
Secretário-executivo da Iniciativa para Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), Fábio Guedes Gomes destacou que o Brasil vive uma queda contínua nos investimentos em C&TI. Entre os panoramas mais graves, apontou que as bolsas para pesquisas não sofrem reajustes há nove anos; que as agências de pesquisas estaduais de São Paulo e Rio de Janeiro – FAPESP e FAPERJ, respectivamente – já possuem orçamentos superiores ao do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), que é um órgão federal, e acabam suprindo cortes vindos do MCTI; e também criticou o possível bloqueio de R$ 2,5 bilhões no FNDCT.
“O bloqueio é muito pernicioso também porque ele não permite a execução orçamentária na sua plenitude e no tempo hábil para que os projetos e as ações dos programas tenham a sua eficiência devida. Então, se esse bloqueio ocorrer, alguns programas estarão extremamente prejudicados, como os fomentos de implantação e modernização da própria infraestrutura de pesquisa das instituições públicas brasileiras, que perderão 28% dos recursos. Os bloqueios tornam a execução orçamentária muito ruim e, em um momento desses em que nós estamos, com financiamentos paralisados e em queda no Brasil em algumas agências, bloquear verbas é atrasar a vida do pesquisador e a vida do país.”
Histórico de cortes segue afetando a ciência brasileira
Enquanto as instituições federais aguardam efetivamente o anúncio do bloqueio orçamentário, um dos grandes problemas é como produzir ciência em um cenário marcado por cortes. “Nós já tivemos um corte de R$ 1,2 bilhão nas universidades e institutos federais, além de outro corte de R$ 2,9 no próprio Ministério da Ciência e Tecnologia. Um novo bloqueio vai interromper fluxos de pagamento de bolsas acadêmicas, fomentos para pesquisas e a própria manutenção das universidades públicas”, pondera Marcus David, presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).
Para Fernando Peregrino, presidente do Confies (Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica), é necessário olhar também outras ações do Governo Federal que visam a redistribuir as verbas destinadas à ciência, como a Medida Provisória nº 1112, popularmente conhecida como a MP da Sucata, que retira verbas do MCTI para arcar com a troca de frotas de caminhões. “É lamentável comprovar que o governo despreza mesmo a ciência e seu papel na sociedade que ele governa. Como pode cortar orçamento da fábrica de conhecimentos, que são as universidades, e as bolsas e projetos que podem ajudar a resolver tantos problemas que só a ciência pode revelar?”, questiona.
Rafael Revadam – Jornal da Ciência