Encerrando os debates sobre a contribuição das Ciências Humanas e das Humanidades no desenvolvimento do Brasil, uma programação realizada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) na última terça-feira (26/03), a última mesa-redonda se propôs a dialogar sobre o que seria uma utopia com base científica, em prol da humanidade e do planeta.
O evento contou com a mediação e participação do presidente da entidade, Renato Janine Ribeiro, além das apresentações de Ricardo Abramovay, professor titular da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP); e de João Cezar de Castro Rocha, escritor, historiador e professor titular de Literatura Comparada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Em sua fala, Janine Ribeiro apontou que uma utopia, nos dias de hoje, só seria possível com a cooperação das várias ciências, inclusive as humanas. “Uma utopia só nasce na integração de saberes. Se nos unirmos sobre os avanços na questão do meio ambiente, da descarbonização, do conhecimento da sociedade, nós podemos gerar uma nova utopia.” Reiterou que é bem conhecida a participação das ciências exatas na questão da transição energética, e a das biológicas no alongamento da vida humana, mas também urge considerar o papel das Humanas – e das Humanidades, que definiu como sendo as artes, a literatura e a filosofia – na questão de como dar sentido à vida humana.
Entretanto, o especialista, que também é filósofo e professor titular da USP, apontou que a sociedade vive hoje uma realidade oposta à da integração, na qual as diferenças sociais estão resultando em segregação.
“Eu creio que essa desagregação do coletivo, do espaço comum, ela apenas foi crescendo nos últimos anos, até o ponto em que as características que são do demos, do povo, e que sustentam a ideia de democracia, se perderam. Um demos é um espaço no qual as pessoas se articulam, conversam e têm um sentimento de pertencimento, um pertencimento coletivo que havia na visão de que ‘somos todos brasileiros’, por exemplo, e que já não há mais.”
O professor alertou que, assim como na polarização política entre direita e esquerda, a divisão entre modos de pensar e vivências é essencial na luta por direitos, mas tem gerado um cenário antagônico, prejudicial ao caminho da utopia:
“Essa ideia de algo que se interpela a todos foi se perdendo. Hoje, nós temos as mesmas formas de relações construídas na militância de cada grupo, que reivindica mais valores e direitos, o que é inteiramente legítimo, mas ao mesmo tempo em que reivindica, cria uma identidade própria marcada na diferença entre ‘nós e os outros’ e, muitas vezes, cria inimizades, como se os outros fossem ameaças. Esse é um ponto que me preocupa muito.”
Olhando para a Ciência, o presidente da SBPC ressaltou que a injustiça social faz que inúmeros talentos, por terem nascido pobres, jamais chegam a ser identificados, quanto mais valorizados – e que isso prejudica não apenas as vítimas do apartheid social, quanto a própria sociedade, que perde muitos profissionais que poderiam fazer nosso País crescer.
“É uma lástima que, dentre os possíveis engenheiros, médicos, químicos, filósofos, professores, empresários e cientistas que o Brasil é capaz de gerar, uma boa parte seja liquidada antes de terem se desenvolvido, sem concluírem seus estudos ou atuarem em suas áreas. O Brasil é um país que desperdiça gente, desperdiça talentos”, disse.
Professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, Ricardo Abramovay afirmou que a visão de utopia, hoje, está estritamente ligada aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que foram criados pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 2015. “A mais importante utopia do século XXI é o desenvolvimento sustentável, e ela se apoia em bases científicas”, pontuou.
Abramovay ressaltou que, por terem sido criados há quase 10 anos, os ODS não incluem pautas essenciais hoje para o alcance do desenvolvimento sustentável. “Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável não são fixos. Por exemplo, se pegarmos os ODS que saíram em 2015, o grande objetivo que se referia à internet era ampliar o acesso dela, o seu alcance. Se esses ODS fossem escritos hoje, o grande objetivo sobre a internet seria impedir que ela comprometa a vida democrática, a privacidade e a sociabilidade, ou seja, que a internet fosse baseada em relações humanas saudáveis.”
O pesquisador destacou que, para o alcance a uma nova utopia, é necessária a participação da diversidade de saberes, como os povos tradicionais e indígenas. “A utopia pode e deve ter uma base científica, mas a Ciência também deve se apoiar em saberes que pertencem à filosofia, à arte e às outras inúmeras dimensões do espírito humano.”
Encerrando as falas do dia, o professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), João Cezar de Castro Rocha, refletiu sobre a importância da internet e do cotidiano digital em que a sociedade se encontra.
“Estamos em um fluxo aparentemente ininterrupto e vertiginoso de dados, e todo dado quantitativo é sempre histórico, ele é relativo ao horizonte disponível numa certa época. Além disso, o universo digital permite algo que é impossível do ponto de vista humano e que estamos lidando, a simultaneidade,” observou.
Segundo o especialista, vivemos hoje uma realidade com propensão ao colapso hermenêutico, o que favorece o caos cognitivo. Com a internet, especialmente o acesso aos smartphones e tablets, estamos quase o tempo todo interagindo com mais de um lugar simultaneamente, criam-se novas dinâmicas nas relações e na trajetória dos acontecimentos. “O universo digital permite que se rompa uma defasagem temporal humana. Hoje, graças à simultaneidade permitida pela transmissão digital, uma ação é transmitida antes mesmo de sua conclusão, essa transmissão conhece uma recepção que tem um alcance planetário absolutamente inédito – e não apenas pelo alcance, mas especialmente pela simultaneidade. Portanto, a recepção de uma ação ocorre no mesmo momento em que ela ainda não se concluiu, em que se encontra em curso. Essa ação recepcionada já é interpretada e, em certas situações, a interpretação da ação que se encontra em curso impacta o próprio curso da ação.”
O universo digital e as relações simultâneas e imediatas afetam o fato e os envolvidos, colocando a sociedade numa dinâmica sistêmica. Ou seja, uma sociedade enraizada no digital, que passa a conviver com o avanço tecnológico e com problemas ainda inimagináveis, aponta Rocha. “Este tempo, de uma impossível verticalidade simultânea, não é um tempo humano, é um tempo propriamente maquínico. Não é casual que hoje nós enfrentemos problemas seríssimos, a automação das relações de trabalho e, também, a emergência da inteligência artificial generativa, essa inteligência artificial cujas consequências são tão radicais que nós não somos sequer capazes de vislumbrar.”
A mesa-redonda “Uma utopia com base científica, para a humanidade e o planeta” e as demais programações que acompanharam a conferência “A contribuição das Ciências Humanas e Humanidades no desenvolvimento do Brasil” podem ser vistas no canal da SBPC no YouTube.
Veja aqui o debate na íntegra.
Rafael Revadam – Jornal da Ciência