As universidades desempenham um papel crucial na geração de conhecimento, na busca por soluções para desafios sociais e na luta por uma sociedade mais igualitária e inclusiva. No entanto, ainda é um campo de batalha para muitas pessoas transexuais que decidem seguir a carreira científica.
As lutas e desafios vividos por essas pessoas foram debatidas na mesa-redonda “Cientistas trans: inclusão e desafios de diversidade na ciência brasileira”, realizada na terça-feira (25), durante a 75ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A reunião acontece de 23 a 29 de julho, no campus Centro Politécnico, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba.
Apesar de ter aumentado, a conscientização sobre a inclusão de pessoas transgênero em vários setores da sociedade ainda enfrenta muitos obstáculos e pouco reconhecimento no campo científico. Isso dificulta sua participação em uma área fundamental para o desenvolvimento do País. “Essas questões muitas vezes aparecem como às margens do debate sobre o significa fazer ciência no Brasil”, apontou Miriam Pillar Grossi, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), diretora da SBPC e presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS). Para ela, o campo de estudos de gênero e sexualidade apresenta questões fundamentais para além do campo de conhecimento, e a contribuição dessas pessoas para a ciência é muito valiosa. “São questões que perpassam e transformam todos os campos de conhecimento da ciência brasileira e mundial.”
A inclusão de pessoas trans nas ciências é fundamental para promover um ambiente mais diverso e inovador, pois a diversidade de perspectivas propicia uma melhor compreensão dos problemas científicos. “Eu não vou apenas produzir algo para legitimar o meu saber, eu vou trazer outros olhares, eu vou desconstruir e desafiar”, explicou Luma Nogueira de Andrade, diretora e professora do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).
A pesquisadora defendeu a importância da quebra de paradigmas e da coragem para questionar o que está posto como verdade. Para ela, esse lugar de ruptura do pensamento tradicional e conservador faz com que haja abertura para outras pessoas trans também se perceberem e terem a coragem de se colocar em quatro pessoas trans. “Se nós temos estudantes que têm a sua diversidade, eles precisam trazer à tona os saberes das suas diferenças, eles precisam ter incentivos para ter essa produção, potencializando esse conhecimento”. Porém, os estereótipos de gênero persistem, limitando a compreensão das pessoas sobre quem pode ser cientista – e muitas vezes as pessoas trans são vistas apenas como objetos de estudo e não como produtoras de conhecimento. “Nós não sabemos só falar sobre nossas singularidades. Nós sabemos atuar e muito bem nos espaços que nos ocupamos”, defendeu.
Ainda que a ciência venha fazendo um esforço para incluir e valorizar a diversidade de pontos de vista, experiências e capacidades, ainda é muito comum que apenas pessoas que atendem à lógica heteronormativa e branca alcancem posições em carreiras científicas. “O simples fato de ser uma pessoa cisgênero branca heterossexual em nossa sociedade favorece um determinado posicionamento de vantagens estruturais e de privilégios, sejam concretos ou simbólicos, que molda a experiência, a identidade e a visão de mundo dessas pessoas”, afirmou Megg Rayara Gomes de Oliveira, professora do Departamento de Planejamento e Administração Escolar da UFPR.
A pesquisadora explicou que esse sujeito considerado “canônico” ou “universal” vai produzir essas exclusões e violências. “Em pleno século XXI, com tanta diversidade epistêmica no mundo, ainda estamos ancorados em estruturas provincianas – e esse provincianismo está disfarçado sob o discurso de universalidade”, declarou. Ela defendeu ainda que as pessoas trans possuem um olhar e uma experiência diversificados, que podem contribuir muito com a ciência, mas que é preciso que as epistemologias sejam mais acolhedoras. “A gente consegue se aproximar dessas epistemologias de uma forma muito competente, de uma forma muito intensa – e a gente consegue subvertê-las na sequência.”
Para Vitória Pinheiro Grunvald, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a construção do conhecimento e da ciência lida também com práticas que são eminentemente políticas. “A ciência é um lugar de poder demasiadamente forte para deixarmos confortavelmente nas mãos de apenas um grupo de pessoas”, defendeu.
A pesquisadora apontou que um esforço conjunto – de governos, sociedade civil, cientistas e instituições acadêmicas – é necessário para corrigir a falta de acesso e reconhecimento das pessoas trans nas ciências. Nesse cenário, as políticas de ações afirmativas no campo educacional e científico são extremamente importantes. “As políticas afirmativas representam o que mais próximo chegamos de uma revolução na sociedade conservadora brasileira, se entendemos revolução como uma mudança radical de estruturas e opressões sociais sustentados histórica e tradicionalmente.”
Para garantir possibilidades para que cientistas trans (e LGBTQIA+) prosperem e contribuam plenamente para o avanço científico, essas políticas precisam ser incentivadas e ampliadas. “Os espaços científicos devem ser democráticos, inclusivos e, por que não, melhores. Temos que assumir que a ciência não é apenas uma ideia que orienta a produção intelectual, mas que seus aspectos institucionais precisam dos saberes que historicamente não acessaram seus espaços legítimos de produção”, concluiu.
Assista à mesa-redonda na íntegra:
https://www.youtube.com/watch?v=fxRXjNnoKIc
Chris Bueno – especial para o Jornal da Ciência