De um bairro popular de Salvador à boneca Barbie, passando por laboratórios do Reino Unido e do Brasil, a biomédica baiana Jaqueline Goes de Jesus mostra que a vida de cientista pode ser bem movimentada. A pesquisadora foi a primeira convidada do programa Bate-Papo com Ciência, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que estreou nessa quinta-feira (7) às 18h, com transmissão pelo Instagram da SBPC (@SBPCnet).
Os entrevistadores deste primeiro programa foram a advogada Maria Goretti Nagime, doutoranda em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), e Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC e ex-ministro da Educação. A ideia do programa é alcançar novos públicos e mostrar para os jovens como é fazer ciência.
Conhecida mundialmente por ter liderado no Brasil a equipe responsável por sequenciar o genoma do vírus Sars-CoV-2, Jaqueline contou sua trajetória, desde as noites em claro estudando em um bairro popular na região central de Salvador (BA), até o desenvolvimento de sua pesquisa de pós-doutorado junto ao Centre for Arbovirus Discovery, Diagnosis, Genomics and Epidemiology, no Reino Unido, onde vive atualmente. “Conversando com minha mãe recentemente, ela me lembrou: ‘todas aquelas noites sem dormir valeram a pena’. Porque realmente, foram muitas noites em claro estudando para conseguir chegar até aqui, e realmente valeu a pena”, disse.
Graduada pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e doutora em patologia humana e experimental pela Universidade Federal da Bahia, a pesquisadora ganhou notoriedade por ter realizado o sequenciamento genômico do primeiro caso de covid-19 detectado no Brasil em apenas 48 horas — a média no resto do mundo para esse mapeamento foi de 15 dias. Durante a live, ela contou como foi essa experiência: “Essa história de 48 horas, na verdade, é o resultado de duas tentativas de sequenciamento. A primeira foi feita em 24 horas, em que só conseguimos 76% do mapeamento. Mas sou muito perfeccionista e não fiquei satisfeita. Então, na segunda 24 horas, atingimos mais de 90%, e pelo fato do sequenciamento permitir análise em tempo real, já enviamos os dados e as informações foram atualizadas”.
O trabalho desenvolvido pela equipe permitiu diferenciar o vírus que infectou o paciente brasileiro do genoma identificado em Wuhan, o epicentro da epidemia na China. Jaquelinetambém explicou que a agilidade do processo foi possível porque se tratava de uma técnica desenvolvida e aprimorada durante seu estágio em Birmingham, no Reino Unido, onde aprendeu protocolos para sequenciamento direto do RNA. “A técnica que usamos, o pessoal do Reino Unido treinou. Foram três anos de fato trabalhando com a técnica. Era algo que estávamos muito acostumados a fazer”, explicou.
Representatividade
Depois do sequenciamento em tempo recorde, Jaqueline já foi homenageada na Assembleia Legislativa da Bahia, recebeu a Comenda Zilda Arns 2020 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), se tornou personagem da Turma da Mônica e virou boneca Barbie, em uma linha produzida para celebrar mulheres que estiveram na linha de frente do combate à covid-19. A pesquisadora contou durante o programa que não esperava tanta “fama”, e no começo não se sentia confortável com os “holofotes”. Porém, começou a olhar para a questão com outra perspectiva. “Eu tinha poucas referências de mulheres, e menos ainda negras. Mas muitos homens. Homens brancos de meia-idade que são ainda hoje a referência no mundo da ciência”, apontou.
Para Jaqueline, existem muitas pesquisadoras jovens, negras, mulheres que ocupam posição de destaque, mas que não têm representatividade. A pesquisadora também relatou que, durante sua trajetória, enfrentou muitas dificuldades por ser negra. “Só fui perceber que era por conta da cor da minha pele muito tempo depois. Eu era uma aluna dedicada, estava em uma posição de destaque, e ainda assim percebia diferença de tratamento, de comportamento, de certos professores e funcionários. E não entendia por quê”.
Para a cientista, é importante não apenas trazer isso para a discussão mas também quebrar esses paradigmas. “No caso da Barbie, foi um plot twist na minha vida. Porque Barbie, loira, magérrima, bem-sucedida, foi um trauma para mim. Tanto que parei de acompanhar. Nem sabia que existiam Barbies variadas — de outras profissões, cores, biotipos. Só lembrava que eu não via representatividade nenhuma nela, e num primeiro momento pensei em recusar. Mas depois pensei que isso faz sentido e faz diferença na vida de muitas pessoas.”
Para Ribeiro, essa representatividade na ciência é essencial, especialmente para as crianças e os jovens, para acreditarem ser possível ocupar este espaço no futuro. “Quando rompe essa barreira, ela avança rápido e é por isso que sua trajetória é muito exemplar”, afirmou o presidente da SBPC.
Chris Bueno – Jornal da Ciência