A sensação que ficou, quando terminou o lançamento da Conferência Nacional Livre, Popular e Democrática de Saúde, no fim da tarde de ontem (6), foi de revigoramento e otimismo cauteloso. O evento aconteceu em Brasília, na Câmara dos Deputados, com contribuições, incentivos e ideias a partir de vários pontos do Brasil via videoconferência – e pôde ser acompanhada de todas as partes através do YouTube. Falaram representantes das entidades que compõem a Frente pela Vida (organizadora e animadora da Conferência), ex-ministros da Saúde de governos progressistas, trabalhadores da saúde, integrantes de movimentos sociais e da luta política. Foi dada a largada aos meses de trabalho coletivo para a construção da Conferência, que tem seu ápice em 5 de agosto.
Entre as falas dos participantes, uma ideia em comum ressoava: a de que o Sistema Único de Saúde (SUS) demonstrou sua força e resiliência salvando centenas de milhares de vidas durante a grave crise sanitária que teve início com a pandemia de covid-19. O Brasil estaria em situação muito pior sem os trabalhadores de saúde que resistiram durante os dois últimos anos. Isso se deu apesar da situação de grave desmonte, desfinanciamento, e ataques diretos – ou omissão – do presidente Jair Bolsonaro. Aliás, uma pauta importante que despontou nos discursos é a da necessidade da derrubada do chamado “teto de gastos”, a Emenda Constitucional 95, que mantém os gastos sociais (inclusive com Saúde) congelados desde 2016.
Muitos dos palestrantes mencionaram a importância desse momento para a realização de uma Conferência que vai debater e imaginar o futuro do SUS. O sistema de saúde vive um momento de grande reconhecimento pelo povo brasileiro, e é visto com orgulho por ele. “O SUS como construção da democracia, como possibilidade de incluir todos os cidadãos como iguais é a proposta mais revolucionária que nós conhecemos. Ele efetiva, mais que qualquer outra política, a ideia da igualdade e da cidadania” refletiu Sônia Fleury, pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz.
É preciso, então, aproveitar essa oportunidade para engajar a população na reconstrução do sistema. “A atualidade nos oprime, mas o futuro nos pertence”, pressagiou Fernanda Sobral, vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “E que futuro queremos para o SUS?”, questionou o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão. “Este que almeja o governo Bolsonaro, precário, fragilizado, ‘para os pobres’”? Temporão acredita que é o momento de recolocar o debate da saúde brasileira em um novo patamar.
Arthur Chioro, outro ex-ministro da Saúde, completou esse pensamento dizendo ser preciso espalhar o debate por todos os cantos do país. Ele acredita que é hora de os trabalhadores do SUS, em conjunto com a sociedade, ousarem novos passos. Significa criar um novo modelo de gestão pública, eficiente e com controle social; reconstruir a política nacional de Atenção Básica, defendendo e avançando na reforma psiquiátrica; mudar o modelo de cuidado, enfrentando as desigualdades de acesso aos serviços especializados, inclusive com o uso intenso da telesaúde. E, relembra Túlio Franco, coordenador da Rede Unida, construir um SUS 100% público, de financiamento estatal, pautado na participação comunitária. “O outro nome do SUS é solidariedade”, refletiu.
Também esteve presente em muitas das falas a ideia de que a luta pela transformação do SUS pode ser catalisadora da mobilização pela construção de um outro Brasil, em que as pessoas possam ter uma vida digna, sem fome e miséria. Rosana Onocko, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), foi uma das defensoras da noção de que a defesa da saúde pode aglutinar, sob seu guarda-chuva, inúmeras outras lutas: por um sistema produtivo mais justo, por uma melhor relação com o meio-ambiente, por uma nova relação entre as pessoas.
Além disso, o SUS também pode ser grande impulsionador da indústria brasileira, com o fortalecimento de um Complexo Industrial da Saúde, lembrou o ex-ministro da Saúde José Saraiva Felipe. Não é possível ignorar, está claro para todos, que um passo importante para que todas essas pautas avancem e que os retrocessos sejam interrompidos é a eleição de um presidente e um Congresso progressistas e populares.
Mas como participar dessa construção coletiva que culminará no evento de agosto? Lúcia Souto, diretora do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), e Fernando Pigatto, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), indicaram o caminho: no site da Frente pela Vida há um espaço para enviar contribuições em vídeo, áudio e texto. Também está prevista a criação de comitês populares que se espalhem por todo o país, para suscitar debates entre os trabalhadores e usuários do sistema de saúde.
E por que, então, falar numa sensação de otimismo cauteloso? Nada está ganho, frisaram muitos dos que falaram. O Brasil viverá nove meses muito intensos, até outubro. Nenhum dos objetivos traçados ontem se realizará sem derrotar Bolsonaro e o projeto fascista. Mas pareceu claro, após quase duas horas de evento, que a Saúde pode dar uma contribuição marcante também para este objetivo democrático indispensável.