Povos indígenas, ribeirinhos, quebradeiras de coco, pequenos agricultores, quilombolas são grupos culturalmente diferenciados, têm uma forma própria de organização social e usam recursos naturais como condição para a sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos e práticas geradas e transmitidas pela tradição. Foi para regulamentar o acesso e a exploração econômica dos conhecimentos tradicionais e do patrimônio genético associados à biodiversidade que foi firmado o Protocolo de Nagoya. Esse acordo internacional estabelece as diretrizes para a regulação da pesquisa e relações entre o país provedor de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados e aquele que vai utilizá-los, abrangendo pontos como repartição de benefícios, pagamento de royalties, estabelecimento de joint ventures, direito a transferência de tecnologias e capacitação. O acordo foi criado na 10º reunião da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) que ocorreu em 2010, em Nagoya, no Japão, e entrou em vigor em 12 de outubro de 2014.
Antes de 2014, o Brasil já tinha uma legislação para o tema, a Medida Provisória Nº 2.186-16, promulgada em 2001. Foi para reformular esse marco legal que em 2015 foi sancionada a Lei Nº 13.123 ou Lei da Biodiversidade. Em vigor desde novembro de 2015 e regulamentada pelo Decreto nº 8.772/2016, a Lei tem sido alvo de muitas críticas, especialmente da comunidade cientifica e de organizações ligadas aos povos tradicionais. Parte desses questionamentos foi apontada em um rico debate sobre a Lei da Biodiversidade que aconteceu em uma das mesas-redondas da 70ª Reunião Anual da SBPC.
Os questionamentos levantados pelo pesquisador da área de vertebrados do Museu Nacional, Paulo Bukup, que apontou empecilhos ao desenvolvimento da indústria biotecnológica e, com isso, dificulta o acesos das comunidades tradicionais à repartição de benefícios. “A lei é operacionalmente inviável e equivocada na essência”, afirmou. Ele ainda acrescentou que para o pesquisador “a burocracia para alimentar a base de dados não é razoável, ela paralisa a pesquisa e gera entraves À cooperação científica com outros países”.
A pesquisadora do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB), Mercedes Bustamante, que representa a SBPC no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), ligado ao Ministério do Meio Ambiente, apresentou os detalhes da legislação sobre biodiversidade no Brasil. Segundo ela, a reformulação do marco legal vigente entre 2001 e 2015 era fundamental em função de suas inegáveis deficiências. “A SBPC trabalhou continuamente no tema e participou dos debates no Congresso Nacional representando a ciência brasileira. A Lei 13.123/2015 foi o resultado possível de uma negociação que envolveu vários setores do governo, da sociedade civil (empresas, detentores de conhecimento tradicional associado e academia) e do Congresso e assim a expressão de todas as forças políticas, sociais e econômicas que tinham interesse no tema”, afirmou.
A partir desse marco legal houve uma reformulação do CGen com ampliação da participação da academia (saiba mais aqui). Além da SBPC, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) também têm assento no Conselho. O CGEn é um órgão colegiado de caráter deliberativo, normativo, consultivo, responsável por coordenar a elaboração e a implementação de políticas para a gestão do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado e da repartição de benefícios, com representantes do setor empresarial, acadêmico e de populações indígenas, comunidades tradicionais e agricultores tradicionais. “Eu acredito que garantir a participação dos povos indígenas e comunidades tradicionais foi um avanço no sentido de reconhecer o conhecimento que esses povos têm sobre a biodiversidade e seus direitos sobre esse sistema de conhecimento”, afirmou Bustamante.
Para a representante do Instituto Socioambiental (ISA), Nurit Bensusan, que também participou da mesa, de fato, a composição do CGen deu mais espaço para os povos tradicionais. “A questão é que no marco anterior os detentores do conhecimento tradicional tinham poder de decisão sobre o uso do seu conhecimento. Agora eles participam da decisão e isso é fundamentalmente diferente!”, declarou. Na opinião dela, a Lei contrapõe usuários (indústrias e pesquisadores) e provedores (povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares) sem estabelecer mecanismos de equilíbrio de forças entre eles.
SisGen
A Lei da Biodiversidade também estabelece que todas as atividades relacionadas à biodiversidade brasileira têm que ser cadastradas eletronicamente no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SisGen). Em funcionamento desde o final de 2017, o SisGen têm sido alvo de críticas por dificultar a atividade dos pesquisadores. Bustamante, no entanto, contou que entre março e junho de 2018, o CGen aprovou uma série de medidas que simplificam o preenchimento do SisGen para pesquisas em biodiversidade.
No total, sete resoluções e uma orientação técnica foram elaboradas em consonância com as sugestões e contribuições vindas da comunidade científica. Uma das resoluções, por exemplo, permite aos pesquisadores de áreas como Filogenia, Taxonomia, Sistemática, Ecologia, Biogeografia e Epidemiologia, fazer o cadastro de suas pesquisas por meio de um formulário simplificado, que estará disponível na próxima versão do SisGen. “Nós estamos atuando fortemente, por meio da Câmara Setorial da Academia, para simplificar o cadastro. Independentemente dos progressos que tem havido nesse sentido, sabemos que o desafio de criar um sistema de monitoramento e controle adequados, mas não que não seja um freio para a ciência, continua”, disse ela. A representante do ISA também mencionou a importância desse monitoramento. “O SisGen é a única forma de verificação que o marco legal tem. Ele tem falhas, mas é um tipo de burocracia necessária para coibir a má-fé e garantir o registro e rastreamento do uso do conhecimento tradicional”, apontou.
Nos termos da Lei da Biodiversidade, a remessa para o exterior de amostra de patrimônio genético depende de assinatura do termo de transferência de material, TTM, instrumento firmado entre remetente e destinatário. Bustamante esclareceu que exigências como essa não são exclusividade brasileira. “A proteção do patrimônio genérico e dos conhecimentos tradicionais é uma questão mundial desde a Convenção sobre a Biodiversidade. Todos os países ricos em biodiversidade estão lidando com esse desafio e criando marcos legais para tratar do tema”, disse. Em março desse ano, uma resolução do CGen aprovou um novo modelo de TTM. Com isso, a instituição brasileira poderá firmar um único TTM com uma mesma instituição estrangeira, com prazo de validade de até 10 anos, e renováveis.
Repartição de benefícios
A exploração comercial de um produto gerado a partir do acesso ao patrimônio genético ou do conhecimento tradicional gera a repartição de benefícios. Eles podem ser monetários ou na forma de projetos de conservação ambiental, por exemplo. No caso do patrimônio genético, a União será indicada como beneficiária da repartição de benefícios, no caso de acesso ao patrimônio genético. E, no caso de conhecimento tradicional associado, os beneficiários serão os povos indígenas, as comunidades tradicionais e agricultores tradicionais. “A repartição de benefícios é uma estratégia de conservação da biodiversidade ao favorecer a permanência desses grupos nos territórios dos quais eles dependem para manutenção do seu modo de vida”, lembrou Bensusan. Na opinião dela, no entanto, o processo de repartição ainda é falho na medida em que o marco legal estabelece limitações para a repartição. Microempresas, empresas de pequeno porte, microempresários individuais, agricultores tradicionais não são obrigados a repartir benefícios. O produto intermediário também é isento da obrigação de repartir benefícios. “São tantas exceções que a repartição propriamente dita é que fica sendo um caso de exceção”, disse a representante do ISA.
Processo em construção
Além dos esclarecimentos que vieram à tona, o debate mostrou que o acesso ao conhecimento tradicional e ao patrimônio genético e a repartição de benefícios são temas complexos. Como exemplificou Bensusan, na maior parte das vezes, o conhecimento tradicional é compartilhado entre vários grupos. Como obter o consentimento prévio informado, sem prejudicar um grupo específico que não queira compartilhar seu conhecimento? O que configura efetivamente acesso ao conhecimento quando parte desses saberes estão ancorados em uma tradição oral, facilmente compartilhada? E o que dizer daquele conhecimento intrínseco, já incorporado em uma espécie, por exemplo. Cabe a repartição de benefícios nesses casos? “A Lei da Biodiversidade ainda não resolve isso, não somente porque ela não foi suficientemente debatida ou porque o texto tenha falhas, mas porque essas são questões muito complexas. Desde que a CDB estabeleceu o conceito de repartição de benefícios, as pessoas, em várias esferas, estão tentando encontrar a melhor maneira de lidar com isso”, disse ela. “A despeito de alguns avanços, ainda temos dificuldade de reconhecer o conhecimento e a cultura de povos indígenas e comunidade tradicionais. Isso tem consequências perversas como, por exemplo, o Estado brasileiro tratar esse contingente de pessoas como pobres e não como populações diversas que têm outros modos de vida e com os quais temos muito a aprender”, finalizou.
A coordenadora da mesa, professora Lucile Floeter Winter, que é também diretora da SBPC, comentou que o debate representou um exercício de democracia, em que diferentes visões puderam ser apresentadas, mas ponderou que a democracia deve ser exercida com responsabilidade. Segundo ela, os esclarecimentos sobre a simplificação do processo que envolve a participação dos pesquisadores estão sendo promovidos e que, portanto, é importante desfazer a imagem da dificuldade, inicialmente apontada, e, assim, incentivar os pesquisadores a continuarem com suas pesquisas.
Patricia Mariuzzo – Jornal da Ciência