Várias áreas de atividade na sociedade brasileira preparam-se agora para conviver com novos cortes nos recursos do orçamento do governo federal, definidos nas medidas provisórias enviadas nestes últimos dias ao Congresso. Agricultura, educação, saúde, ciência e tecnologia, são algumas delas. Desta vez, a decisão é explicada pela necessidade de compensar a redução no preço dos combustíveis, em razão da greve dos caminhoneiros. Mais uma vez, áreas de impacto social e estratégicas estão sendo negligenciadas pela atual gestão.
Imersos nas tarefas do dia a dia, vamos assistindo esse espantoso processo de deterioração das estruturas que devem sustentar o avanço social, processo para o qual, aparentemente, não há saída. Um exercício de imaginação poderia nos levar a pensar como serão avaliados, daqui a dez anos, o momento e as circunstâncias que estamos vivendo hoje.
Cabem nesse exercício, também, algumas perguntas sobre o passado. Uma delas: o que impediu o País, nas últimas décadas, de fazer um esforço maior através de investimentos e pesquisas para obter melhores resultados econômicos apoiados em tecnologia e inovação? O caso mais gritante parece ser o do setor de fármacos e medicamentos, com sua conta crescente de importações para atender às demandas do sistema de saúde. Quanto teria sido necessário investir em P&D para que parte desses produtos fossem fabricados no País, com tecnologia local? Os exemplos são inúmeros e, a propósito do movimento que levou transportadores a parar o Brasil: segundo maior produtor de biodiesel no mundo, atrás dos EUA, o Brasil obtém esse combustível, que contribui para reduzir a emissão de CO2 na atmosfera, principalmente da soja. Sabe-se, no entanto, que existem várias outras fontes potenciais na biodiversidade brasileira para produção de biodiesel. Como descobrir se elas podem resultar em produtos mais baratos que os atuais sem investimentos em pesquisa de ponta?
No campo dos alimentos, a “façanha” de obter mais das mesmas matérias-primas, no mesmo local, vem sendo praticada há bastante tempo. Mas há um grande número de possibilidades a serem investigadas e exploradas, muitas em fase avançada de pesquisa, outras buscando articulação comercial. Dezenas de espécies frutíferas nativas exibem características únicas de sabor e aroma com potencial para se transformarem em novos produtos aos quais a tecnologia pode agregar valor, inclusive para o mercado internacional. Uma grande quantidade de espécies vegetais sob estudo, dos diferentes biomas, apresenta componentes bioativos (antioxidantes, antitumorais, anti-inflamatórios, antifúngicos, por exemplo) que merecem ser alvo de investimentos pela indústria em busca de inovações com “DNA” brasileiro. Uma porta possível para ingressar no ambicionado mercado mundial de alimentos funcionais, cosméticos e medicamentos.
Os exemplos vêm do mundo real. Um dos mais recentes medicamentos contra diabetes tipo II, aprovado pelo FDA em 2004, e lançado comercialmente em 2005, tem sua molécula ativa inspirada em um peptídeo natural, a exendina-4, isolada do veneno do lagarto Monstro-de-Gila (Heloderma suspectum), que vive nos EUA e México. Quantos peptídeos naturais, modelos de fármacos inovadores podem estar escondidos nas inúmeras espécies de plantas e animais (incluindo lagartos) de nossa biodiversidade terrestre, aquática e marinha?
É instigante pensar o que fariam coreanos e japoneses com uma costa marítima de 7.500 quilômetros de extensão e uma das maiores bacias hidrográficas do mundo. Áreas onde habitam milhares de espécies, grande parte desconhecida. Quantas espécies de peixes, tratados com o devido manejo e técnicas de preservação, poderiam ampliar a oferta de alimentos ou, mesmo, serem incluídos como novos itens na pauta da exportação?
Como se pode ver, a expectativa de explorar essas possibilidades não deveria ser um desejo restrito à comunidade de ciência, tecnologia e inovação, que hoje vê seus projetos de pesquisa interrompidos e alguns de seus jovens talentos fazendo as malas em busca de oportunidades no exterior. Trata-se de um “sonho” perfeitamente realizável que poderia ser encampado por toda a sociedade em benefício do País e cheio de oportunidades para nossos descendentes. Os recursos que vêm sendo continuamente retirados da Capes, CNPq e Finep representam um preço altíssimo que o País está pagando em detrimento de seu futuro.
Sobre a autora:
Vanderlan da S. Bolzani é professora titular do IQ-Unesp, vice-presidente da SBPC e da Aciesp