‘Mais do que celebrar, devemos refletir’, dizem pesquisadores sobre Bicentenário da Independência

Tema foi discutido durante live de lançamento da revista Ciência & Cultura nessa segunda-feira

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Mais do que celebrar, devemos refletir sobre o que significam 200 anos de independência. Essa foi a principal mensagem dos participantes do evento Bicentenário da Independência do Brasil — Povos e Lutas” realizado ontem (07/03) pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A live marcou o relançamento da revista Ciência & Cultura, um dos mais veículos de divulgação científica mais antigos e emblemáticos do Brasil.

O evento contou com abertura de Renato Janine Ribeiro, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e presidente da SBPC, Ildeu de Castro Moreira, professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente de honra da SBPC, e Fernanda Sobral, professora emérita do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e vice-presidente da SBPC. O debate teve a participação de George Félix Cabral de Souza, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Lilia Moritz Schwarcz, professora da FFLCH da USP, e Valdei Lopes de Araújo, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), e mediação de Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e editor científico desta edição da revista.

Para Janine Ribeiro, o Bicentenário da Independência deveria ser a grande data comemorativa do ano no Brasil. “É significativo que o governo brasileiro não tenha dado importância para este fato, no sentido que não estamos tendo uma política de inauguração de obras públicas, não estamos tendo grandes exposições, nem grandes iniciativas de pesquisa com apoio governamental. Então coube a nós como sociedades assumir esse papel”. O presidente da SBPC destacou as várias ações que a entidade vem realizando para celebrar o bicentenário, como o Dia do Fico — evento virtual em alusão ao fato histórico quando D. Pedro I decidiu ficar no País após pedido da população em 9 de janeiro de 1822, que discutiu os dilemas enfrentados pelos jovens cientistas no Brasil de hoje. “Vamos continuar relembrando essas datas e fazendo essas discussões para que tenham como meta não simplesmente a evocação do passado, mas a construção do futuro”, disse.

Uma discussão atual

“O passado não passou. Uma parte fundamental dele continua definindo nossa sociedade, seja em seus aspectos positivos, seja em seus desafios”, afirmou Araújo. Para o pesquisador, temos um legado positivo que devemos celebrar e perpetuar, mas também existem pontos cegos que estão ficando cada vez mais evidentes neste momento de crise, e que devem ser avaliados. Para ele, é cada vez mais necessário dar voz e visibilidade aos subalternizados e oprimidos que durante muito tempo foram silenciados, como os indígenas, os negros, as mulheres, e mais atualmente o movimento LGBTqia+. “Precisamos atualizar esse legado através de um novo esforço de comunicação da ciência, da criação de novas plataformas”.

Para Cabral de Souza, além de ser atual, a discussão sobre a independência é essencial. “Essa é uma oportunidade de trazermos ao debate uma discussão que tem tudo a ver com nosso presente. Não estamos tratando de um evento engessado, paralisado, ocorrido há 200 anos, mas sim de algo que fala diretamente à nossa atualidade”. O pesquisador explica que a importância da história de Pernambuco em relação ao país foi silenciada em detrimento da centralização no eixo Sudeste do poder político e da vida econômica do Brasil. Deste ponto de vista, o bicentenário é fundamental para estimular a reflexão sobre nossa própria história. O bicentenário também é importante para refletir sobre alguns dos processos que serviram para garantir e ampliar as desigualdades sociais, que se mantém até hoje. “Estamos diante de uma verdadeira encruzilhada histórica entra a construção de uma sociedade democrática pautada pelo direito e o risco das tentações autoritárias”, alerta.

Segundo Schwarcz, ao longo desses 200 anos, nossa independência foi sendo “sequestrada”. Inicialmente esse “sequestro” foi feito por São Paulo, que através da pintura de Pedro Américo (“O Grito do Ipiranga”), foi tomando para si um lugar central nas festividades de 7 de setembro. Depois, durante a ditadura, os militares associaram a imagem de D. Pedro e todo o processo de independência a uma “revolução marcial”, numa tentativa de legitimar seu poder. E agora, o governo atual novamente se utiliza dessa construção imagética. “Ao organizar duas manifestações antidemocráticas, uma em Brasília e outra em São Paulo, Jair Bolsonaro se utilizou a todo momento da tela de Pedro Américo e da metáfora da independência para falar de mais um golpe da legalidade que teria que ser dado em 2022. Assim, sequestrou não só a independência, como conceitos muito caros à democracia”, alerta.

Fortalecendo o debate

Para Figueiredo, a revista Ciência & Cultura está sendo relançada em um momento crucial para a divulgação da ciência, e o tema do primeiro número vem ao encontro dos debates atuais.  “Este é um momento que temos que entrar pesadamente nessa batalha que estamos vivendo no universo cultural e político”, diz. O pesquisador afirma que é necessário envolver o grande público nessa discussão, fornecendo informação de qualidade e oportunidade de participar do debate. “Esse evento foi capaz de sublinhar as linhas de força  da atividade de divulgação, que é a reflexão crítica, a clareza, a seriedade da pesquisa e do uso dos dados para análise das situações históricas e da avaliação do presente”.

Moreira reforça a importância da participação de diferentes atores para fortalecer o debate e a comunicação da ciência: “a possibilidade da revista Ciência & Cultura se firmar e de fato colaborar para melhorar a situação do país e aproximar a ciência e a cultura está na interação grande entre as pessoas que vão ler, que vão participar, que vão assistir. A revista vai ter sucesso se ela for participativa e se ela envolver cada vez mais pesquisadores, estudantes, jovens, artistas, professores, ou seja, brasileiros e brasileiras de todas as nuances”.

História

Criada em 1949, um ano após a fundação da SBPC, a Ciência & Cultura foi idealizada por José Reis (1907-2002), que a dirigiu de 1949 a 1954 e de 1972 a 1985. A partir dos anos 2000, a publicação passa a ter suporte técnico do Labjor, da Unicamp, e a ser dirigida por Carlos Vogt, então vice-presidente da SBPC na gestão de Glaci Zancan, que ficou à sua frente de 2000 a 2007 e de 2018 a 2021. Assim, ela é um dos mais antigos — e importantes — veículos de divulgação científica do país. Com edições temáticas, a revista une textos científicos, de opinião e de divulgação, e fala tanto para um público especializado quanto para o público em geral. Desta forma ela consegue mostrar perspectivas diferentes sobre diversos assuntos.

“A revista já passou por vários formatos e várias concepções e agora estamos dando um salto, porque a revista passa a ser inteiramente digital. Isso não quer dizer apenas que o conteúdo estará disponível online, isso quer dizer que ela terá conteúdos específicos para o formato digital, como podcasts, vídeos e links, além de debates e entrevistas, etc.”, explica Janine Ribeiro.

De publicação trimestral, a cada edição a revista escolhe um tema para abordá-lo do ponto de vista da ciência, cultura, arte e filosofia. Todos os meses, um novo capítulo é publicado, trazendo novos artigos, ensaios, reportagens jornalísticas, textos de opinião, vídeos, podcasts e muito mais.

Confira aqui o primeiro número da Revista Ciência & Cultura

Assista aqui a live da lançamento da Revista Ciência & Cultura

Veja o vídeo produzido para o lançamento da versão digital da revista Ciência & Cultura. 

Jornal da Ciência