O Decreto Federal nº 9.283, de 7 de fevereiro de 2018, que regulamentou a lei nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016, foi recebido pela comunidade acadêmica e empresarial como “um passo importante” para aproximar instituições científicas e tecnológicas (ICTs) e o setor produtivo, aumentar as chances de o conhecimento chegar às empresas e alavancar o desenvolvimento econômico e social.
“O novo marco legal da Ciência, Tecnologia e Inovação (C,T&I) reconhece que ciência e tecnologia são atividades de risco e foca nos resultados, não nos procedimentos”, afirma Helena Nader, ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “O decreto é relevante, com o melhor formato possível”, diz Zaira Turchi, presidente do Conselho das Fundações de Amparo à Pesquisa (Confap) e presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa de Goiás.
“Os atores do ecossistema de inovação terão mais segurança jurídica porque a regulamentação definiu orientações mínimas para a cooperação entre ICTs e o setor produtivo”, comenta Gianna Sagazio, superintendente nacional e diretora de Inovação do Instituto Euvaldo Lodi (IEL) da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
“O decreto desburocratiza o ambiente de pesquisa e, no âmbito dos estados, tem interface com as encomendas tecnológicas”, observa Francilene Garcia, presidente do Conselho Nacional de Secretários Estaduais para Assuntos de Ciência, Tecnologia e Inovação (Consecti) e secretária executiva de Ciência e Tecnologia do Estado da Paraíba.
O decreto que regulamenta a lei dispõe sobre estímulos ao desenvolvimento científico e tecnológico e altera artigos de outras quatro, incluindo a Lei nº 8.666: em seu artigo nº 61, por exemplo, dispensa de licitação a contratação de obras e serviços de engenharia enquadrados como produtos para pesquisa e desenvolvimento.
“O novo marco legal é o resultado de uma criação coletiva, que levou dois anos para ser confeccionado. Enquanto a lei nº 13.243 tem 18 artigos, o decreto que a regulamenta tem 86, com o objetivo de clarear e oferecer segurança jurídica aos atores do sistema”, afirma Alvaro Prata, secretário de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).
O decreto autoriza, por exemplo, as instituições públicas a ceder diretamente a empresas o uso de imóveis para a instalação de “ambientes promotores da inovação” – parques tecnológicos, aceleradoras, entre outros –; flexibiliza as regras de transferência de tecnologia de ICTs para o setor privado; e possibilita que as instituições públicas participem minoritariamente do capital da empresa, de forma direta ou indireta, por meio de fundos de investimentos constituídos com recursos próprios ou de terceiros, entre outras medidas.
“Se uma universidade tem determinada tecnologia, pode entrar como sócia de um empreendimento disposto a levá-la ao mercado”, exemplifica Jorge Campagnolo, diretor do Departamento de Políticas e Programas de Apoio à Inovação do MCTIC.
Também amplia mecanismos de subvenção a micro, pequena e média empresas, implantando, entre outras medidas, o bônus tecnológico, destinado ao pagamento de contratação de serviços tecnológicos; além de autorizar que a subvenção econômica possa ser utilizada pelas empresas tanto para o financiamento de atividades de pesquisa como para despesas de capital.
“Alguns entraves foram solucionados pelo marco legal e ratificados pela regulamentação”, afirma a diretora de Inovação do IEL/CNI, citando a possibilidade de o Estado contratar diretamente ICTs ou empresas para a realização de atividades de pesquisas, desenvolvimento e inovação (P,D&I).
“Outro ganho importante é a isenção ou redução do imposto de importação para empresas na execução de projetos”, disse Sagazio, embora lamente o veto presidencial ao artigo da lei nº 13.243 que previa a igualdade entre ICTs e empresas no que diz respeito a essa questão.
Francilene Garcia, presidente do Consecti, espera que o governo reexamine alguns dos oito vetos à lei nº 13.243, demonstrando assim a mesma disposição “ao diálogo propositivo” que pautou os debates sobre o decreto. Um desses vetos, ela menciona, distinguiu instituições privadas e públicas no que diz respeito à concessão e isenção de impostos sobre bolsas. “Bolsas são um direito de qualquer cidadão, esteja ele vinculado a instituições públicas ou privadas”, argumenta.
Representantes da academia, do setor público e das empresas temem, no entanto, que a “burocracia” coloque entraves que, na avaliação de Sagazio, “só serão notados no dia a dia da aplicação da nova lei”.
Turchi preocupa-se com a “interpretação” que os órgãos de controle farão da nova lei. “Há questões que constam em lei há 10 anos. Se os tribunais e órgãos de controle não entenderem e não assimilarem as mudanças, as instituições ficarão reféns de interpretações. E esse é um ponto crucial. O rigorismo do controle contamina também as universidades, e os pesquisadores acabam tendo que dedicar parte do tempo de pesquisa para lidar com questões que não são de fundo”, disse.
Órgãos de controle
“É preciso tempo para assimilar tudo”, avalia Prata. O secretário de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação do MCTIC adianta que uma série de providências está em curso para dar suporte ao novo marco legal de CT&I, envolvendo os ministérios da Fazenda e do Desenvolvimento, Planejamento e Gestão.
Ele cita o exemplo do Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse (Siconv), iniciativa do Governo Federal responsável por todo o ciclo de vida dos convênios, contratos de repasse e termos de parceria, no qual são registrados os atos, desde a formalização da proposta até a prestação de contas final. “O sistema terá um módulo especial para CT&I. A lei e o decreto permitem isso”, disse.
Prata também conta que estão sendo elaborados guias para esclarecer os atores envolvidos. “A própria Advocacia Geral da União e procuradores com atuação na área de CT&I precisam estar preparados para defender as medidas previstas no novo marco legal”, afirma. E adianta que as consultorias jurídicas do MCTIC e do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC) já estão trabalhando na elaboração de documento para municiar os procuradores de forma a “fazer valer o decreto em sua plenitude”.
Há um guia também para os setores industriais, envolvendo a CNI, Movimento Empresarial pela Inovação (MEI) e a Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras (Anpei). “A indústria precisa saber que pode fazer parcerias com as ICTs, criar startups públicas e privadas”, exemplifica Prata. “O setor empresarial precisa perceber a dimensão dada pelo decreto.”
A recomendação vale para as ICTs, que, segundo ele, precisam saber que podem convidar empresas para compartilhar espaço público, e para os pesquisadores, que “têm que ter conhecimento de que podem transferir despesas de custeio para capital” em percentual correspondente a 20% do valor contratado sem autorização da concedente. “Na hora da prestação de contas o importante é o resultado.”
Prata recomenda ainda que as agências de fomento “cobrem” das instituições de pesquisa e de pesquisadores uma maior atenção às iniciativas autorizadas pelo decreto de forma a ampliar o escopo do projeto na perspectiva do resultado.
A especificidade da CT&I
Helena Nader – que, ao longo de três mandatos (2011-2017) à frente da SBPC, participou ativamente das negociações para o estabelecimento do novo marco legal – reconhece que os avanços da legislação traduzem um novo entendimento da “especificidade” das atividades de C,T&I. “O ponto crucial é o reconhecimento de que se trata de atividades diferentes de qualquer outra: envolvem risco e, portanto, exigem uma avaliação diferente de resultados”, disse.
A rigor, ela sublinha, o caráter particular das pesquisas voltadas à inovação foi reconhecido em 2015, quando a Emenda Constitucional nº 85, de 26 de fevereiro, atualizou o “tratamento” das atividades de C,T&I, reconhecimento consubstanciado na Lei 13.243, de 11 janeiro de 2016, que alterou nove leis nos termos da Emenda 85.
“A Lei reuniu orientações até então dispersas, com a perspectiva de que C,T&I envolve risco e é diferente, por exemplo, da construção de uma estrada”, comparou a ex-presidente da SBPC. “O Decreto nº 9.283, ao regulamentar a Lei de 2016, entre outras leis, reflete isso.”
Nessa perspectiva, o novo marco legal da C,T&I, por exemplo, não prevê ressarcimento quando as metas de P&D não são atingidas “em razão do risco tecnológico, desde que fundamentadas e aceitas pela concedente”, de acordo com o artigo 47. E se, ao longo do andamento da pesquisa, houver a necessidade de adquirir um equipamento ou contratar um serviço, não previstos no plano original, “o pesquisador pode remanejar recursos de uma rubrica para outra até o limite estabelecido pela legislação”, acrescenta Turchi.
De acordo com a presidente do Consitec, Francilene Garcia, a nova legislação define claramente o conceito de ecossistema e entende que o fluxo de iniciativas em CT&I precisa de uma trilha diferente. “Experimentos com organismos vivos para o desenvolvimento de vacinas, por exemplo, não devem seguir as mesmas regras utilizadas para a importação de commodities”, disse.
Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP, observa que a preocupação com os recursos para a CT&I é, em geral, o foco das atenções, já que são essenciais, “ainda mais nos dias de hoje”. Mas ressalta que “o ambiente institucional é um aspecto central de qualquer sistema de inovação. O exemplo norte-americano revela isto com clareza, no incentivo às parcerias e à comercialização dos resultados da pesquisa, ou ainda na natureza privada não lucrativa de suas melhores universidades e laboratórios. A Lei Francesa de inovação é outro exemplo. Tudo isto inspirou inovações institucionais pelo mundo inteiro”.
E continua: “Em 2001, na Conferência Nacional de CT&I fizemos uma primeira discussão organizada desta questão e debatemos a primeira versão da Lei de Inovação que finalmente foi aprovada em 2004. Agora damos mais um passo importante para modernizar nosso sistema de inovação. O fundamental daqui para frente será exercitar as possibilidades abertas pelo novo marco legal. Estas coisas não são automáticas”.
Na avaliação de Pacheco, o marco legal cria “possibilidades” que têm de ser postas em práticas pelos atores e que precisam ser fomentadas pelas agências. “Com o tempo vamos poder experimentar essas novas soluções, testá-las e verificar sua eficácia. E ter sempre em mente que isto é uma construção, que de tempos em tempos tem de ser revisitada. O essencial é ir em frente.”
Marcos regulatórios estaduais
O novo marco legal da pesquisa científica e tecnológica e inovação está na pauta da próxima reunião do Confap, de 7 a 9 de março, em Santa Catarina. “Vamos discutir os desdobramentos da legislação nos estados, afirma Turchi. “Com exceção de São Paulo e Minas Gerais, que já reviram os seus marcos regulatórios à luz da Lei 13.243, os marcos regulatórios dos demais terão que ser revistos”, afirma a presidente do Conselho das FAPs.
“Em grande parte dos estados, a lei de inovação precisa ser atualizada e, em alguns deles, precisa ser criada, incorporando aspectos do novo marco legal”, acrescenta a presidente do Consecti, Francilene Garcia, que, junto com o Confap, atua para a sua implementação em todo o território nacional.
“O decreto abre inúmeras possibilidades que precisam ser implementadas”, reitera Prata. “Os estados mais conservadores serão pressionados pelas instituições para que avancem utilizando o decreto. Do mesmo modo que foram forçados a criar FAPs e as Secretarias de Ciência e Tecnologia, serão levados a utilizar elementos do novo marco legal para fazer avançar a CT&I”, ele prevê.
As atividades de C,T&I em São Paulo foram regulamentadas pelo Decreto nº 62.817, de 4 de setembro de 2017. O texto foi elaborado por um grupo de trabalho formado por 14 especialistas e representantes das Instituições Científicas e Tecnológicas do Estado (ICTESPs), entre eles um representante da FAPESP, o diretor administrativo Fernando Menezes, que participou na condição de membro designado.
“O decreto paulista já prevê a dispensa de licitação para compra de insumos para projetos de pesquisa científica e tecnológica e a possibilidade de as universidades e instituições de pesquisa compartilharem o uso de laboratórios, equipamentos e demais instalações com empresas para a realização de pesquisa”, afirma Menezes.
A legislação paulista também proporciona maior segurança jurídica aos pesquisadores de instituições de pesquisa do estado ao estabelecer parcerias de P&D com o setor privado. Permite, por exemplo, que pesquisadores tenham participação nos ganhos econômicos dos licenciamentos de tecnologias e que tenham a possibilidade de se licenciar para constituir empresas ou prestar consultoria técnico-científica, por exemplo.
O decreto paulista contempla, ainda, a internacionalização das ICTs públicas que estão autorizadas a executar atividades, a alocar recursos humanos e enviar equipamentos para o exterior, entre outras iniciativas.
Jornal do Brasil