“Não existe projeto de país sem ciência pública, diversa e espalhada por todo o território”

Em entrevista ao JC Notícias, a vice-presidente da SBPC, Francilene Garcia, comenta os principais pontos do seminário “Vozes da Ciência” e analisa os avanços institucionais para concretização da nova Estratégia Nacional de CT&I
Francilene Procópio Garcia_1 (1)
Foto: Jardel Rodrigues/SBPC

Em dois dias intensos de debates e trocas de experiências, o seminário “Vozes da Ciência” reuniu representantes da academia, do setor produtivo e de diferentes esferas do governo para discutir caminhos concretos para o futuro da ciência no Brasil. Promovido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em parceria com a Academia Brasileira de Ciências (ABC), o encontro, realizado nos dias 22 e 23 de maio, teve como foco a construção coletiva da nova Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação para a próxima década.

Entre as pessoas que vêm contribuindo de forma consistente para esse processo está a professora Francilene Garcia, vice-presidente da SBPC, que esteve à frente da organização do seminário e também coordenou a sistematização do Livro Violeta — documento que reúne 150 recomendações surgidas durante a 5ª Conferência Nacional de CT&I.

Garcia destaca nesta entrevista os consensos institucionais alcançados até aqui e os próximos passos necessários para transformar recomendações técnicas em políticas públicas efetivas. “O Vozes da Ciência mostrou que não queremos só o processo de escuta — queremos transformar a escuta em política”, afirma.

Para ela, garantir representatividade no grupo de trabalho anunciado pelo MCTI no evento, recompor os investimentos na ciência básica e fortalecer a articulação interinstitucional são ações fundamentais para consolidar uma política científica duradoura, plural e conectada aos desafios do país.

Outro ponto que, segundo Garcia, precisa ganhar força na Estratégia Nacional é o debate sobre novas fontes de financiamento para a ciência, especialmente por meio da filantropia. Ela destaca que esse mecanismo já conta com respaldo legal no Brasil, mas ainda é pouco explorado como instrumento de apoio a pesquisas de interesse público e ações estruturantes do sistema nacional de CT&I.

Ao comentar temas como a valorização dos saberes tradicionais, a regionalização da pós-graduação e a aproximação entre academia e setor produtivo, a vice-presidente da SBPC reforça que a ciência brasileira só poderá avançar se estiver enraizada no território, na diversidade e no interesse público. “Não existe projeto de país sem ciência pública, diversa e espalhada por todo o território”, diz.

Confira a entrevista a seguir:

Jornal da Ciência – Professora, desde 2023, a senhora tem participado ativamente da construção da 5ª Conferência Nacional de CT&I, coordenou a sistematização do Livro Violeta e, na última semana, realizou, em parceria com a ABC, o seminário Vozes da Ciência. A partir desse percurso, especialmente do seminário, o que mais lhe chamou atenção na forma como diferentes setores — academia, governo, setor produtivo — têm se engajado na construção de uma nova Estratégia Nacional de CT&I? Já é possível vislumbrar sinais concretos de avanço institucional?

Francilene Garcia – O que mais me chamou atenção foi essa confluência de vozes em torno de uma ideia muito forte: não existe projeto de país sem ciência pública, diversa e espalhada por todo o território. Tanto a academia, quanto o governo e o setor produtivo mostraram que estão dispostos a dialogar e construir juntos. E sim, já vemos avanços concretos. O próprio anúncio da ministra Luciana Santos sobre o lançamento do grupo de trabalho que vai elaborar a Estratégia Nacional e o Plano Decenal é um bom exemplo. O Vozes da Ciência mostrou que não queremos só o processo de escuta, queremos transformar a escuta em política. Isso é um passo importante.

JC – Como garantir que esse grupo de trabalho anunciado pelo MCTI permaneça alinhado aos consensos construídos na 5ª CNCTI e no Livro Violeta — e que consiga transformar essas diretrizes em ações concretas, sem perder de vista a coerência e a articulação necessárias para uma política nacional robusta e duradoura?

FG – A chave é ter representatividade. Esse GT precisa incluir representantes do ambiente institucional plural que participou da 5ª CNCTI, que contribuiu na construção do Livro Violeta. O Livro tem que ser o guia, não só uma referência. Transparência, escuta constante e compromisso com resultados também são essenciais. E claro, que haja articulação entre ministérios, estados e planejamento de médio e longo prazo. Esperamos que a comunidade científica esteja bem representada nesse grupo.

JC – O seminário abriu com uma discussão sobre ciência básica, sua importância para a autonomia e desenvolvimento de tecnologia e inovação no Brasil. Como a senhora avalia a capacidade do País de recompor investimentos nessa base do sistema nacional de CT&I, especialmente diante de um cenário de contingenciamentos frequentes e orçamento público restrito, como estamos vendo agora nas Universidades Federais?

FG – A ciência básica é a base de tudo, é o que sustenta a soberania de um país. Mesmo com as restrições orçamentárias, vejo uma consciência renovada sobre a importância de recuperar os investimentos, com previsão estável e duradoura. A gente precisa de metas claras para essa recomposição. E, também, temos que discutir novas fontes de financiamento. Um ponto que deve entrar com força na Estratégia é a filantropia para a ciência, que já tem respaldo legal, mas ainda é pouco aproveitada no Brasil.

JC – A mesa dedicada às Unidades de Pesquisa do MCTI trouxe reflexões importantes sobre o papel estratégico dessas instituições e os desafios que enfrentam, como perdas de quadros técnicos, limitação orçamentária e necessidade de maior articulação interinstitucional. Entre as propostas debatidas —recomposição do orçamento, criação de novos institutos, inclusão de representantes no grupo de trabalho da Estratégia Nacional e fortalecimento da governança —, quais a senhora acredita que podem ser ativadas de imediato no âmbito do MCTI? E quais ainda exigem articulação política em instâncias superiores?

FG – Três coisas podem começar já: colocar representantes das unidades no GT, reforçar a governança e a articulação entre instituições, e inserir as unidades nas missões prioritárias nacionais. Já as partes de orçamento e criação de novos institutos exige mais: precisa negociar com a Fazenda, conversar com o Congresso. São mudanças maiores, estruturais.

JC – A valorização dos saberes tradicionais e sua integração com o conhecimento científico foram destacadas nas discussões sobre biodiversidade, Amazônia, justiça socioambiental e mudanças climáticas. Como a senhora avalia a abertura do sistema nacional de CT&I para acolher essas epistemologias como fontes legítimas de inovação e formulação de políticas públicas? Que caminhos ainda precisam ser percorridos?

FG – De forma consensual e muito forte no seminário ouvimos que não há futuro justo e sustentável sem integrar os saberes tradicionais ao conhecimento científico. É preciso transformar o conhecimento biocultural em política de Estado. A formação de pesquisadores locais, infraestrutura de pesquisa instalada na Amazônia e uma mudança de mentalidade no sistema são caminhos fundamentais. Ainda tratamos essas epistemologias como exceção, quando elas são potências.

JC – A formação de pesquisadores e o futuro da pós-graduação apareceram como temas fundamentais nos debates, ao lado da fuga de cérebros e da concentração da produção científica em algumas regiões do país. Que propostas a senhora destacaria para enfrentar esse duplo desafio: valorizar os jovens cientistas e garantir que encontrem oportunidades relevantes em todo o território nacional?

FG – Valorizar jovens pesquisadores significa garantir bolsas dignas, trajetórias profissionais estáveis e inclusão efetiva nos ambientes acadêmicos e científicos. Para isso, é fundamental ampliar os investimentos e criar mecanismos que reconheçam o mérito e a diversidade regional, étnica e temática. A concentração da produção científica em algumas regiões do país é um problema histórico que só será superado com políticas de indução territorializadas. Isso implica investir em redes de cooperação entre universidades, ampliar a oferta de programas de pós-graduação nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e criar incentivos para a fixação de pesquisadores fora dos grandes centros.

JC – Uma das diretrizes mais enfatizadas tanto na 5ª CNCTI quanto no seminário Vozes da Ciência é a necessidade de aproximar o setor produtivo da academia, superando barreiras históricas entre pesquisa, mercado e sociedade. Por que, na sua avaliação, o mercado ainda permanece — salvo algumas exceções — distante das instituições de produção de conhecimento, mesmo com os incentivos da Lei do Bem e os avanços do Marco Legal da CT&I? O que falta para que, no Brasil, boas pesquisas se convertam em soluções concretas que gerem inovação, empregos e bem-estar social?

FG – O Marco Legal ajudou, mas ainda falta uma cultura de cooperação mais estruturada. O seminário destacou que a indústria nacional precisa assumir um papel ativo, investindo em P&D e ancorando a inovação no interesse público. É preciso também repensar os mecanismos de incentivo, garantindo que cheguem à base produtiva, especialmente à indústria emergente e inovadora. Além disso, as estruturas de pesquisa e inovação no Brasil ainda estão concentradas em poucos polos regionais, dificultando o acesso de empreendedores de outras regiões aos ambientes de inovação. Falta uma política mais assertiva de mediação tecnológica, que conecte os ativos das universidades às demandas concretas do mercado e da sociedade — com foco no interesse público.

JC – O Livro Violeta é resultado de um processo amplo, plural e tecnicamente robusto, com mais de 500 propostas sistematizadas em 145 diretrizes prioritárias. Mas, como mostram os casos dos Livros Verde, Branco, Amarelo e Azul, transformar recomendações em políticas públicas efetivas exige mais do que bons diagnósticos. Como evitar que esse novo esforço saia, efetivamente, do papel? Quais são, na sua visão, os próximos passos para que o Livro Violeta se traduza em ações concretas?

FG – O Livro Violeta precisa ser vivo. Isso significa ter uma governança ativa, diretrizes incorporadas na Estratégia e no Plano Decenal, metas mensuráveis e orçamento compatível. E não pode ser só coisa de Governo Federal. Estados, setor privado, sociedade civil têm que estar juntos na implementação. A execução precisa ser acompanhada, avaliada e ajustada.

JC – Por fim, a SBPC e a ABC reafirmaram o compromisso com a continuidade do processo iniciado na 5ª CNCTI, e a SBPC seguirá promovendo debates para manter viva essa agenda estratégica. Que ações estão sendo planejadas para envolver universidades, governos estaduais, o setor produtivo e a sociedade civil nos próximos anos — e de que forma a comunidade científica pode participar ativamente dessa construção coletiva?

FG – A SBPC e a ABC estão comprometidas com a continuidade. Teremos novas edições dos “Vozes da Ciência” abordando novos temas, reuniões estaduais de CT&I, e outros espaços de diálogo com o setor produtivo e gestores. A comunidade científica tem papel-chave: se engajar nos debates locais, produzir subsídios e cobrar a execução das diretrizes da CNCTI.

Daniela Klebis – Jornal da Ciência