Nos quase 35 anos do início do estabelecimento do programa de lançamento de foguetes da Força Aérea Brasileira (FAB) na Base de Alcântara (MA), pouco se avançou em relação ao atendimento das necessidades da população local afetada pelo projeto. É o que denunciam moradores da região, que expuseram suas frustrações com a inação dos governos e temores com impactos negativos ainda maiores em razão do novo “Acordo de Salvaguardas de Alcântara”, firmado entre Brasil e Estados Unidos para uso das instalações da FAB. “A base de lançamento de Alcântara e os novos desafios colocados às comunidades quilombolas” foi tema de mesa-redonda nessa terça-feira, 23, na 71ª SBPC, que está sendo realizada em Campo Grande, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
O professor Alfredo Wagner, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), notório especialista no tema, coordenou as discussões e cobrou do representante do governo uma postura mais comprometida de respeito às necessidades das comunidades afetadas pela base e que passarão por nova realocação com a expansão da área geográfica do projeto. “O Estado brasileiro não tem memória. O governo passado não teve e o governo atual também não tem”, reclamou Wagner ao apresentar dados produzidos pela própria Agência Espacial Brasileira (AEB) sobre as áreas afetadas pelo projeto em 2006. Na visão do especialista, é urgente que a AEB levante esses trabalhos já realizados e atualize o material de forma precisa para que se possa fazer uma política consequente de redução do impacto sobre as populações atingidas, especialmente as comunidades quilombolas.
O presidente da AEB, Carlos Augusto Teixeira de Moura, negou que a Base de Alcântara não tenha trazido melhorias estruturais para a comunidade local. Envolvido desde o início, em 1985, o engenheiro que agora preside a agência responsável pelo programa espacial brasileiro, citou casos como a instalação de flutuantes para facilitar o acesso de embarcações na região, que sofre com as grandes oscilações de maré. Também defendeu que as novas realocações, que atingirão mais cerca de 200 famílias, são necessárias por motivos de segurança. Mas admitiu que é preciso estreitar o diálogo para que os antigos problemas sejam mitigados e não se criem novos embates com a comunidade.
“Estamos aqui em uma reunião para o progresso da ciência e eu não vi uma pessoa que falasse mal da ciência ou que não pedisse mais recursos. Temos aí uma unanimidade que, nesse caso, não é burra”, afirmou, parafraseando a célebre fala do dramaturgo Nelson Rodrigues. “Mas sabemos que temos que ouvir a todos para definir qual a melhor forma de levar esse progresso adiante”, arrematou.
Sobre as polêmicas em torno do Acordo de Salvaguardas, Moura lembrou que só faz sentido manter a Base de Alcântara se ele, de fato, tiver utilização. E que o acordo foi revisto nesse sentido, de não serem perdidos os grandes investimentos já realizados, dando uso prático do centro de lançamentos pelo Brasil e outros países. “O tempo está passando e estamos vendo que, se não aproveitarmos isso agora, vai deixar de fazer sentido manter”, previu o presidente da AEB, lembrando que há uma nova corrida de desenvolvimento espacial em diversos países. Ele admitiu que o primeiro acordo de salvaguardas “extrapolava” em alguns itens ao ponto de haver “uma certa ingerência” dos Estados Unidos sobre o Brasil em Alcântara. Mas acredita que esses pontos foram corrigidos no acordo recente. “O momento hoje é favorável para que o Brasil volte a colocar um pezinho no segmento espacial”, afirmou.
Sem licença e sem titulação
Os representantes das comunidades locais não comungam do otimismo da AEB. Depois de décadas sem solução de sua demanda mais importante – o recebimento da titulação das terras para onde foram realocados em 1986 –, não é de se espantar que o ceticismo prevaleça entre os moradores da região. Segundo Alfredo Wagner, a área ainda pendente de resolução sobre o título de ocupação abrange 78 mil hectares, deixando as 312 famílias realocadas no início do projeto e seus descendentes em situação cada vez mais precária de subsistência. “Cada representante que vem debater repete a mesma coisa. Completa hoje um ano que a gente estava em Maceió, na mesma reunião da SBPC, com o presidente da AEB e ele falando a mesma coisa”, desabafou Leonardo dos Anjos, representante do Movimento de Atingidos pela Base de Alcântara (MABE-Alcântara).
Anjos lembrou que o descaso com a população afetada pelo projeto transcende os governos e vem desde o início do programa da FAB na região. “Até agora não há nenhum avanço, nenhum progresso, nenhum desenvolvimento para a população de Alcântara por conta dessa base”, afirmou. “A culpa não é da AEB. Eu digo que a culpa é do governo brasileiro, que nunca quis, nesses anos todos, implantar de verdade um projeto de desenvolvimento.”
A representante das comunidades quilombolas da região, Dorinete Serejo Morais, concorda com Anjos sobre a falta de impacto positivo da Base de Alcântara para a população local. Segundo ela, as agrovilas criadas para a realocação das famílias muitas vezes foram estabelecidas em áreas inférteis e a expansão da base agora ameaça o sustento pesqueiro das famílias. “Eles falam em ‘consolidação’ do projeto com o novo acordo, mas a gente não é burro. Isso já estava planejado há muito tempo e afetará cerca de 2 mil pessoas, mais de 700 famílias. Porque praticamente todo o litoral de Alcântara, à exceção da Baía de Cumã à Oeste, será tomada. O acesso ao mar já é hoje muito restrito e com a consolidação será praticamente nenhum”, denunciou a liderança comunitária.
As preocupações da população local têm um forte catalisador, rememorado pelos participantes: o fato de que a Base de Alcântara até hoje não possuir licenciamento ambiental para estar no local o que, tecnicamente, deveria ter impedido o projeto desde o início. “Esse é um centro que nunca respeitou a legislação, que nunca fez estudo de impacto ambiental, que vem tratando o local como um vazio demográfico e que não nos reconhece como cidadão”, criticou Morais. Para ela, o racismo também é um elemento importante na disputa entre os moradores da região e a FAB. “Fosse no Sul, não iam tratar os brancos de olhos azuis assim”, protestou.
O professor Alfredo Wagner lembrou que a discussão tanto dos impactos para a população local quanto a própria conduta do Brasil na revisão do Acordo de Salvaguardas está intimamente ligada a soberania do País, a uma visão de Nação que se coloca em função de interesses que não são os da sua própria população. “No acordo, três ministros de Estado brasileiros assinam, enquanto da parte dos Estados Unidos quem assina é um secretário assistente. Nós não queremos ser subjugados por país nenhum. E a maneira que esse acordo foi assinado deixou muito clara esse constrangimento ao qual o Brasil está submetido”, criticou o especialista.
Mariana Mazza – especial para o Jornal da Ciência