Única como o Bioma que defendeu até os últimos momentos de sua vida – a Caatinga -, Niède, com seu jeito singular será a celebridade eternizada em sua obra de vida.
Desde o início de seu trabalho, atuou de forma vanguardista, realizando muito do que hoje está vigorando como novidade ou inovação: como pesquisadora interagia e trabalhava junto à comunidade local, e, dessa forma, praticava o que hoje tem recebido muita adesão e destaque – a Ciência Cidadã. Pensar em sustentabilidade de convivência com o semiárido sempre esteve nas pautas de seus projetos de pesquisa, projetos sociais e no seu dia a dia, questões tão presentes hoje em tempos de mudanças climáticas, motivo de grande preocupação para ela também, já há muito tempo.
Niède conhecia a Caatinga e seu potencial de vida e resiliência! Foi pioneira em dar destaque ao potencial da apicultura nesta região, e seu Projeto ABHA – Água para o Berço do Homem Americano foi de grande valia para potencializar as ações promotoras das tecnologias sociais direcionadas para a questão da falta de água potável no território Serra da Capivara!
Vez por outra os jornais noticiavam suas afirmações incisivas acerca do abandono e do descaso com a proteção das áreas naturais e com o desenvolvimento social das regiões com clima semiárido no país. Porém, a convivência com ela logo nos permitia identificar características que a tornavam única: inteligência, que lhe imprimia uma visão do todo concebia soluções simples aos diversos problemas que a ela eram apresentados diariamente; solidariedade, pois não havia quem batesse à sua porta e não recebia, ao menos, uma sugestão sobre qual caminho seguir; alegria, pois seu bom humor constante, às vezes sabiamente ácido, enchia de alegria e entusiasmo o dia a dia de quem estivesse ao seu lado.
Sempre que se deparava com algum animal diferente, notadamente, os artrópodes, Niède me ligava, pedindo para que eu fosse até sua casa olhar, identificar. Essa conversa ia longe, gerava ideias de pesquisa e tantos outros assuntos. A convivência estreita se deu porque fui convidada por ela, em 2011, para ser membro da FUMDHAM – Fundação Museu do Homem Americano – e vir pesquisar junto a ela e sua equipe aqui na Região do Parque Nacional Serra da Capivara, um dos motivos que me estimularam a sair de São Paulo e vir morar em São Raimundo Nonato, em 2013, ano em que ela foi homenageada na 65ª Reunião Anual da SBPC.
Seu legado é imensurável, e, certamente, será amplamente divulgado, registrado e lembrado. Por isso, vou aproveitar a saudade para lembrar da minha convivência intensa com ela e contar um momento que ficou famoso, que foi comentado inclusive no programa Roda Viva da TV Cultura de 29 de setembro de 2014, ocasião em que ela e eu recebemos um desenho feito pelo saudoso Paulo Caruso durante o programa.
Quando ainda pesquisadora no Instituto Butantan, ao realizar trabalho de campo no Boqueirão da Pedra Furada, no Parque Nacional Serra da Capivara, encontrei um exemplar de aranha marrom, que me chamou atenção, despertando a hipótese de que poderia ser uma espécie nova, não conhecida pela ciência. Levando-a ao laboratório, pude constatar que de fato era uma nova espécie do gênero Loxosceles. Junto de outros colegas pesquisadores, iniciamos o trabalho para descrever a espécie e publicar o artigo. Nesse processo, tive uma vontade enorme de colocar o nome de Niède na aranha, para homenageá-la, mas pelo fato de a aranha marrom ser a que tem o veneno mais tóxico no Brasil, receei que, talvez, pudesse se ofender. Conversamos sobre o assunto, contei sobre a nova espécie que havia descoberto e da minha intenção em nomear a espécie de aranha marrom encontrada no Parque com seu nome. Niède se encheu de alegria! Expliquei que era uma aranha que pertencia a um grupo com veneno mais tóxico no Brasil, responsável por muitos acidentes com desfechos graves; ainda assim a alegria dela foi contagiante. Contava para todas as pessoas dizendo “Cuidado comigo, agora sou uma aranha venenosa” e foi assim que descrevi a primeira espécie de nossa fauna com o nome dela completo: Loxosceles niedeguidonae.
Depois da aranha, ela ficou eternizada também como designação de uma nova espécie de pássaro da Caatinga. No ano passado, 2024, o nome niedeguidonae foi atribuído a um pássaro lindo e resiliente, conhecido como choca do Nordeste. A espécie Sakesphoroides niedeguidonae foi descrita por egressos do curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI), num belo estudo que revelou que “alterações históricas no curso do rio São Francisco e oscilações climáticas ao longo de aproximadamente um milhão de anos foram responsáveis pela divisão das choca-do-nordeste em duas espécies distintas – Sakesphoroides niedeguidonae, até então era considerada parte da espécie Sakesphoroides cristatus” (Fonte https://www.ufpi.br/ultimas-noticias-ufpi/56667-egressos-da-ufpi-descobrem-especie-de-ave-na-caatinga-animal-recebe-nome-em-homenagem-a-niede-guidon).
Niède escolheu viver na região mais seca e desprestigiada do Nordeste brasileiro, valorizando, produzindo cultura e alternativas de desenvolvimento, centradas no potencial científico, turístico e cultural, que um dia, quiçá, será valorizado. E nos deixou na Semana do Meio Ambiente, um dia após o Dia da Educação Ambiental e às vésperas dos 46 anos do Parque Nacional Serra da Capivara, rodeada de atas que têm tudo a ver com sua história aqui na região.
Uma mulher forte, doce e profunda, como as interpretações musicais de Bidu Sayão, sua cantora preferida.
Obrigada, Niède! Continuaremos aqui lutando pela Caatinga para fazer valer sua dedicação e vamos aguardar qual será a nova espécie da Caatinga que receberá seu nome!
Rute Andrade, secretária regional da SBPC no Piauí e membro e pesquisadora da Fundação Museu do Homem Americano