No dia 25 de março de 1824 foi outorgada a primeira Constituição Federal do Brasil, considerada por muitos historiadores como uma imposição política do então imperador do País, Dom Pedro I. Na data em que se comemora os 200 anos deste marco histórico, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) realizou um encontro de modo a refletir como o documento que garante os direitos da população tem o autoritarismo em sua base.
Coordenado pelo presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, o debate contou com a participação de Andrea Slemian, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); a historiadora Isabel Lustosa, pesquisadora integrada ao Centro de Humanidades (CHAM) da Universidade Nova de Lisboa; e Christian Lynch, professor do Instituto de Estudos Políticos e Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Janine Ribeiro abriu as falas do dia apontando uma tradição recente da gestão da SBPC, de utilizar datas históricas para refletir os alicerces do Brasil. “Nós começamos essa programação com a Virada da Independência, um evento que foi das 4h30 da tarde do dia 6 de setembro de 2021 e foi até o mesmo horário do dia 7 de setembro. Foram 24 horas de atividades cuja finalidade era refletir o centésimo ano da Independência. Depois, fizemos o Dia do Fico, que teve uma peculiaridade, já que aproveitamos o mote para discutirmos a permanência ou saída dos cientistas no Brasil. E estamos seguindo essa estratégia de reflexão com os períodos históricos.”
O presidente da SBPC, que também é filósofo e professor titular da Universidade de São Paulo (USP), destacou a importância de conhecer o contexto no qual a Primeira Constituição do País foi estabelecida para entendermos a evolução dos direitos fundamentais dos brasileiros até os dias de hoje. “O Brasil, de certa forma, teve um pioneirismo nesse ponto. Por outro lado, não podemos esquecer que essa Constituição foi outorgada, ou seja, ela não foi fruto da Assembleia Constituinte.”
A Primeira Constituição foi outorgada em 25 de março de 1824 pelo imperador D. Pedro I, após ele dissolver a Assembleia Nacional Constituinte em 1823 e impor seu próprio projeto.
Esta primeira Carta Magna brasileira concedeu amplos poderes ao imperador; estabeleceu o Poder Moderador e um sistema de monarquia hereditária. A Constituição de 1824 também introduziu o conceito de voto censitário, restringindo a participação eleitoral às pessoas com uma renda mínima específica, limitando o direito ao voto e a elegibilidade para cargos públicos a uma parcela economicamente privilegiada da população. Finalmente, o que não é um detalhe, manteve a escravatura, embora sem a mencionar explicitamente.
Janine Ribeiro situou um conflito na primeira Carta brasileira: por um lado, sendo Constituição, limitava o poder monárquico, sepultando o absolutismo; por outro, sendo outorgada e incluindo o Poder Moderador, dava ao monarca um protagonismo incompatível com o que mais tarde será a democracia. Associou também essa ambiguidade à própria personagem de Pedro I, por sinal tema de um livro da profa. Isabel Lustosa: “No Brasil, ele acabou sendo forçado à abdicação, por ser considerado autoritário, quase absolutista; mas seguiu prontamente para Portugal, onde, lutando contra seu irmão, o usurpador Dom Miguel, se tornou o protótipo do herói liberal”, como o professor comentou num debate, em 2022, com o professor Eugenio dos Santos, da Universidade do Porto (https://www.up.pt/casacomum/portal-da-memoria/4-d-pedro-no-brasil-e-em-portugal/).
Professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Andrea Slemian, concordou com Janine Ribeiro sobre a importância de se revisitar e refletir sobre a história da Primeira Constituição, principalmente por ser um período mais esquecido da sociedade em geral.
A pesquisadora traçou uma linha do tempo do pensamento constituinte desde o seu primórdio, na Europa, e mostrou como a ideia inicial das Constituições era ser um meio de manutenção dos poderes, algo que foi mudando quando figuras sem ascendência régia, como Napoleão Bonaparte, se tornaram figuras de poder.
“Constituição era uma palavra que tinha um sentido até então descritivo, significava as normas vigentes em determinados territórios. A partir dos movimentos revolucionários do final do século XVIII, ela passa a ter um sentido prescritivo. O que isso quer dizer? A ideia da Constituição vai mudar de sentido, onde não se trata mais de descrever as normas existentes em determinado local, mas se trata de conceber um documento político, antes de tudo, que garantisse direitos aos cidadãos e a separação entre os poderes”, ponderou a especialista.
Professor do Instituto de Estudos Políticos e Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, Christian Lynch complementou que o grande desafio neste período histórico é a disputa de poder.
“Eu diria que a história constitucional desse período, o que ela tem de mais complicada, de mais quente e de mais controversa foi a questão da organização dos poderes. Não houve muita discussão sobre os direitos fundamentais da sociedade, o problema foi no agenciamento dos poderes e, sobretudo, quem representava a soberania da Nação.”
Partindo do recorte nacional, Lynch afirmou que a primeira Constituição, assim como as demais decisões políticas que permearam a consolidação do Brasil como um País, foi idealizada para atender principalmente aos interesses de Dom Pedro I:
“Foi em torno do príncipe regente que o Brasil se fez. A Constituinte estava subordinada a reconhecer a primazia do imperador como representante da Nação”, negando a pretensão dos constituintes de que a soberania nacional estivesse alocada a uma assembleia eleita, como acontecerá nas democracias.
Já a historiadora Isabel Lustosa, pesquisadora integrada ao Centro de Humanidades (CHAM) da Universidade Nova de Lisboa, ressaltou como era Dom Pedro I e suas contradições:
“Dom Pedro I era um personagem no meio do tempo, um personagem dividido em duas coisas igualmente importantes. Ele é um príncipe moderno, simpatizante de Napoleão Bonaparte, já que a juventude de seu tempo tinha afeição militar e um fascínio com Napoleão”
O contato de Dom Pedro I com tropas, intelectuais e, ainda, a Maçonaria fez com que o príncipe regente tivesse gosto pelas Constituições. “Ele vai deixar uma espécie de testamento para o filho dizendo: ‘meu filho, saiba que os reis não governam mais daquele jeito, agora você tem que seguir as leis’. Dom Pedro I sempre acreditou nas Constituições.”
Lustosa explica que esse constitucionalismo de Dom Pedro I provocou certo conflito, porque, ao mesmo tempo, ele era uma figura que defendia a soberania da monarquia. E dessas contradições é que sai a primeira Constituição do País, segundo a historiadora.
“Dom Pedro I era um legitimista, ele ficou lutando o tempo todo pelo direito dos Bragança, o legítimo direito dele pelo trono de Portugal, já que o trono do Brasil ele viria a conquistar posteriormente. Essas ambiguidades formam o personagem que está no centro dos acontecimentos do Brasil”.
A SBPC continuará, nos próximos tempos e nos próximos anos, a promover debates e análises dos tempos de formação do Estado Nacional independente, processo que durou décadas e que merece ser oportunamente reavaliado.
O debate 200 anos da 1ª Constituição do Brasil está disponível na íntegra no canal da SBPC no YouTube.
Rafael Revadam e Daniela Klebis – Jornal da Ciência