Após uma grande campanha de adesão, que mobilizou quase 200 entidades de todo o País, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) realizou nessa quinta-feira, 29 de junho, uma reunião com sociedades científicas e organizações da sociedade civil de diversas áreas e segmentos, para deliberar sobre a proposta de criação do ¨Dia de Luta pela Democracia Brasileira¨. No encontro, entre várias datas sugeridas, a maioria dos participantes votou pelo dia 31 de outubro, em referência ao dia em que foi realizado, em 1975, o ato ecumênico de luto pela tortura e assassinato de Vladimir Herzog.
O jornalista foi covardemente assassinado nas dependências do DOI-CODI em 25 de outubro do mesmo ano. O ato ecumênico, que reuniu 8000 pessoas na Praça da Sé, em São Paulo, é considerado a pedra fundamental para a queda, anos depois, da ditadura militar que controlava o Brasil desde o golpe de 1964.
Segundo o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, a ideia da criação de uma data para refletir sobre a importância da democracia para o nosso país surgiu depois dos graves golpes contra as instituições democráticas sofridos nos últimos anos, que mostraram o quão frágil esse regime ainda é no Brasil. “Precisamos deixar claro a todos os brasileiros, principalmente aos jovens, que os crimes praticados pelo Estado, em especial pelos que se apoderam dele para seus fins escusos, são inaceitáveis”, afirmou.
Com inspiração no “El Día Nacional de la Memoria por la Verdad y la Justicia” da Argentina, a secretária-geral da SBPC, Cláudia Linhares Sales, apontou que o objetivo é construir coletivamente um dia de análise crítica da história recente. “Queremos construir uma coisa que se torne um patrimônio independente de leis. Queremos mostrar que a democracia é um processo coletivo e que a do Brasil foi construída por muitas lutas. Por isso, propomos que instituições educacionais, sobretudo as escolas do nível básico, e mesmo infantil, realizem atividades para que crianças e jovens, compreendam a importância de se ter uma democracia e se envolvam ativamente para defender a vigência dos direitos e garantias consagrados no sistema político democrático. Queremos educar essas novas gerações para que elas nunca mais passem pelo que estamos passando”, afirmou.
Na Argentina, desde o fim da ditadura militar a própria sociedade inverteu o sentido do dia do golpe, que se deu em 24 de março de 1976, e iniciou a comemoração no seu aniversário de El Día Nacional de la Memoria por la Verdad y la Justicia. Em 1988, o dia de fato, foi fixado por lei pelo presidente Menem que recomendou que fosse uma data de rememorações escolares, e em 2006 o presidente Kirschner transformou em feriado.
Todos os participantes da reunião foram enfáticos na inserção da palavra “luta” para reforçar a ideia que a democracia é construída.
“Desde o início a nossa ideia é pedagógica. Temos de conquistar os jovens para que eles falem “Ditadura nunca mais”. Para muitos, hoje a democracia é fazer o que quiser. Confundem democracia com privilégio. Ou seja, acreditam que podem falar e fazer o que quiserem. E isso é muito grave. A democracia é um sistema que se constrói em conjunto”, reforçou o presidente da SBPC.
Janine Ribeiro disse ainda que para que as escolas se mobilizem, as secretarias de educação, municipais e estaduais, e também o Ministério da Educação (MEC), serão convocados a realizar atividades nessa data. “Além de todas as entidades que aderiram, iremos contar também com o apoio das Secretarias Regionais da SBPC”, disse.
“Nosso objetivo sempre foi ter um impacto pedagógico, porque precisamos ensinar aos jovens o que é democracia. Mas, mais que ensinar, temos de ensiná-los a defendê-la e lutar por ela”, declarou Fernanda Sobral, vice-presidente da SBPC.
Helena Nader, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), reforçou a necessidade de incluir a palavra luta no nome da data por causa das atitudes dos jovens atuais. “Muito do que estamos vivendo foi um pouco nossa culpa. Nós lutamos contra a ditadura. Mas erramos quando o Brasil deixou de condenar os culpados. As crianças cresceram como se tudo fosse lindo. O que mais me assustou recentemente foi o desconhecimento desses jovens sobre a história do Brasil. Muitos foram para as ruas pedir a volta da ditadura. Por isso, um momento de esclarecimento é de suma importância”, afirmou.
Octávio Costa, presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), comentou que há quatro anos seria impensável debater o tema. “Parecia que a democracia era algo dado. Mas após o último governo e sabermos que um major e um coronel estavam conspirando abertamente e pedindo apoio o alto escalão do Exército para dar um golpe no País nos fez repensar que temos sim de lutar pela democracia no Brasil”, salientou.
Dácio Matheus, reitor da Universidade Federal da ABC e representante da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), ressaltou que a democracia está ameaçada depois de tantos golpes desferidos nos últimos anos. “Essa iniciativa é fundamental, uma vez que ninguém esperava ter de lutar pelo fortalecimento da democracia. E nós temos uma responsabilidade, sobretudo na educação dos jovens. Temos de ganhar novos corações já que vivemos uma situação temerosa. A situação delicada ainda não passou. Temos de lutar por uma democracia, porque ela ainda está sendo construída”, disse.
Para Angela Coutinho, representante da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), é preciso também conquistar professores, gestores, porque serão eles os responsáveis pelas atividades. “Se isso não for feito, o conhecimento não será repassado e continuaremos educando os jovens sem citar o passado”, disse.
A representante da Associação Brasileira de Mutagênese e Genômica Ambiental (MutaGen-Brasil), Lucymara Fassarella também é favorável à data de reflexão diante da inserção e fortalecimento da extrema direita nos últimos anos entre jovens. “Quase metade da população votou no Bolsonaro na última eleição. Por isso, trabalhar educação e difusão da verdade é extremamente importante, porque passamos um risco muito grande. Abrimos a caixa de Pandora e tudo de ruim que estava enrustido saiu. Vai ser difícil colocarmos de volta nessa caixa os monstros liberados. A violência e os casos de pedofilia aumentaram. Toda uma avalanche de coisas ruins que estão atrelados a essa ideologia ultradireitista que tem sido imposta”, lamentou.
Sônia Magalhães, vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), comemorou a adesão de quase de 200 entidades em torno de um momento de reconstrução. “Criar esse dia para reabrir a discussão, para reconverter aqueles que se direcionaram para essa extrema direita é super importante, já que a situação se tornou muito grave”, disse.
“Essa ideia de que a sociedade foi construída pela paz, mostra que precisamos enfrentar isso de forma correta. Passamos pela colonização, escravização dos negros e de indígenas, e de certo modo temos colocado isso embaixo do tapete como se os avanços fossem feitos pela paz. Quando essa nossa democracia, mesmo que frágil, foi construída por meio de luta. É educativo mostrar as conquistas da sociedade, ela não foi historicamente outorgada e sim conquistada. E luta não é balbúrdia, é uma construção social em direção a um determinado objetivo. E, infelizmente, nos últimos anos, vimos um empobrecimento das categorias democráticas no País”, acrescentou Magalhães.
Rosana Onocko Campos, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), disse que no mundo todo a democracia está ameaçada. Em vez de uma ruptura repentina, o cenário mais comum é o de mudanças graduais que apagam o sistema democrático, e, por isso, o momento não pode ser esquecido. “E isso precisa ser discutido com as crianças. A democracia é uma construção civilizatória”, disse.
Para finalizar, Francilene Garcia, diretora da SBPC, ressaltou a necessidade de, nos próximos passos, pensar em como fazer com essa celebração alcance um maior número de pessoas e concretize seus objetivos. “É preciso buscar ativamente um espaço, inclusive nas redes sociais. E, além de criar uma campanha de engajamento, precisamos pensar em um símbolo para a data”, propôs.
Janine Ribeiro acrescentou que o grupo deverá, em breve, criar uma Comissão com representantes de entidades que aderiram ao manifesto lançado no dia 19 de abril para determinar a divisão de trabalho e a agenda de ações.
Vivian Costa – Jornal da Ciência