A crise causada pela pandemia de coronavírus chama a atenção para a importância da ciência desenvolvida no País e para o necessário fortalecimento de políticas públicas de apoio à construção de conhecimento científico. A opinião foi compartilhada por todos os participantes do segundo painel nacional da Marcha Virtual pela Ciência, organizada pela SBPC na última quinta-feira, 7 de maio, com apoio de mais de 100 entidades científicas e instituições de ensino e pesquisa e entidades científicas de todo o País. O debate online abordou os desafios e sucessos da ciência, tecnologia e inovação (CT&I) no Brasil.
O presidente da SBPC, Ildeu de Castro Moreira, que coordenou o painel, ressaltou que mesmo com os cortes drásticos sofridos no setor nos últimos anos, cientistas brasileiros, universidades e instituições de pesquisa estão empenhados no enfrentamento da pandemia, na busca de medicamentos, materiais de segurança, novos equipamentos a custos acessíveis e em centenas de pesquisas sobre contágio, testes diagnósticos, análise do código genético e a perspectiva de encontrar uma vacina. Para ele, se as universidades e instituições tivessem uma infraestrutura mais adequada, as condições para seu enfrentamento poderiam ser melhores e a percepção social sobre a gravidade dessa crise sanitária seria maior.
Ao comentar a situação da ciência brasileira, Moreira apontou que o Brasil está no 11º lugar no ranking global em produção científica e que o País possui cerca de 200 mil pesquisadores, número que na proporção por 1 milhão de habitantes fica bem abaixo de diversas nações, como Argentina, Estados Unidos, os países da União Europeia, Coreia do Sul e Israel.
“Claro que ao comparar com outros países, temos um longo caminho a percorrer, mas o que temos hoje é resultado dos investimentos de várias instituições, universidades, das agências de fomento, como CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico,) Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), Finep, do trabalho de ICTs (Instituições de Pesquisa Científica e Tecnológica), entre outros, que mesmo com ciclos oscilantes contribuíram para a criação de um Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia robusto e que significa um pouco mais de 50% da ciência produzida na América Latina”, afirma Moreira.
Segundo o presidente da SBPC, outro ponto significativo que contribuiu para o desenvolvimento da pesquisa brasileira foi o surgimento da pós-graduação na década de 60 e que hoje conta com cerca de 4 mil cursos espalhados por todo os País. “Boa parte das pesquisas brasileiras provêm da nossa pós-graduação. Claro que elas precisam ser aprimoradas, melhoradas, mas não podemos desmontar um processo que foi construído por décadas com o trabalho de muitas pessoas e recursos públicos”, afirma, ao fazer alusão aos cortes sofridos pelas bolsas das grandes agências de fomento do Brasil.
Mesmo com tantos problemas ao longo dos anos, o presidente da SBPC lista alguns exemplos positivos da ciência brasileira que contribuíram para a economia brasileira. “O primeiro exemplo é no desenvolvimento da agricultura tropical, realizada por universidades e Embrapa. Uma grande contribuição veio da pesquisa realizada por Johanna Döbereiner, sobre o processo de fixação de nitrogênio. Outra foi a exploração de petróleo em águas profundas, pelo êxito do Pré-sal – e que representa hoje na produção de 55% da produção brasileira de petróleo”, destacou. “Por trás desse sucesso estão instituições, pessoas qualificadas e universidades brasileiras, o que coloca o Brasil na vanguarda em alguns campos”, disse.
Moreira ressaltou ainda o orçamento de investimento em pesquisa das principais instituições da área, que despencou a menos da metade nos últimos sete anos. O recurso para investimento do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) chegou a R$ 8 bilhões em 2013 e agora está em R$ 3,5 bilhões. A Capes teve o orçamento reduzido para a metade no mesmo período, tendo perdido 25% do ano passado para este. Outro problema grave é o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), principal fonte de recursos para pesquisa e desenvolvimento (P&D), ao longo de décadas, que teve entre os anos de 2006 e 2020 cerca de R$ 25 bilhões contingenciados e atualmente está com mais de 90% de seus recursos presos na reserva de contingência. “Recentemente tivemos que lutar para que o fundo não fosse extinto”, lembra, e “para isto tivemos o apoio de senadores dos diversos partidos”.
“Um dos grandes desafios a serem enfrentados é fazer com que a CT&I esteja integrada em um projeto de nação. Que seja democrático, menos desigual, com desenvolvimento sustentável e com soberania. Podemos fazer mais se tivermos apoio e encaixados em um projeto de nação que use inteligentemente também os enormes recursos naturais que temos e no qual a CT&I seja um instrumento essencial. Podemos melhorar? Sim, com certeza, mas precisamos participar da construção e estarmos inseridos neste projeto maior”, defendeu.
Moreira ainda reiterou durante a manifestação as reivindicações do Pacto pela Vida e pelo Brasil, publicado em 7 de abril, e assinado pela CNBB, OAB, Comissão Arns, ABC, ABI e SBPC e que ganhou apoio de mais de uma centena instituições e associações. O documento pede a união de toda a sociedade, solidariedade, conduta ética e transparente dos governos, e ações que tomem por base as orientações da ciência e dos organismos nacionais e internacionais de saúde pública no enfrentamento da pandemia de coronavírus.
Um fator importante para o desenvolvimento do Brasil é o governo tratar como prioridade a área de CT&I, afirmou a diretora de Inovação da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Gianna Sagazio. “A pandemia está, de fato, mostrando que CT&I de maneira articulada é fundamental para que a gente possa superar essa crise de saúde, que acumula outras crises. Essa prioridade precisa ser traduzida em políticas públicas, através de instrumentos como sistemas de financiamento adequados. O governo precisa enxergar que a ciência é fundamental porque ela vai irrigar toda pesquisa e desenvolvimento que se precisa fazer.”
A executiva também defende uma maior aplicação dos conhecimentos em soluções industriais. “Entendo que essa superação só será viável por meio da CT&I. Por isso, precisamos de uma estratégia de país que coloque a ciência, tecnologia e inovação como prioridade e vetor para o alcance do desenvolvimento. É necessário priorizar estas áreas com políticas públicas de longo prazo, que tenham de fato uma visão do País, que projetem qual o futuro que o Brasil quer ter”, disse.
Para exemplificar a falta de estratégia política na área de CT&I, Sagazio cita que o Brasil caiu 19 posições na última década, ficando em 66º lugar no Global Innovation Index, e um dos fatores que contribuem para isso é o fato do o País investir menos de 1,3% do PIB em pesquisa e desenvolvimento (P&D), enquanto países ricos, como os da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), investem, em média, 2% – alguns, como a Coreia do Sul, chegam a investir 4%. “O que está ocorrendo nos EUA, Europa, China é que existe um reconhecimento pelo governo e sociedade que investir em CT&I é prioridade e é vetor para o desenvolvimento. A este reconhecimento corresponde à disponibilização de instrumentos, a formulação de políticas e recursos financeiros sustentados ao longo dos anos. No ano passado, por exemplo, a China e os Estados Unidos investiram, em termos absolutos, acima de UR$ 500 bilhões em pesquisa e desenvolvimento”, afirma.
Para o presidente do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap), Fábio Guedes Gomes, o País está perdendo a oportunidade de contribuir com o esforço mundial de colocar a ciência para combater a pandemia do novo coronavírus. “Apesar de a comunidade acadêmica estar à disposição lutando, no âmbito local, do ponto de vista federal, não há movimento neste sentido. Há, ao contrário, o de negar a realidade e construí-la sobre falsas premissas”, opinou.
“Somos capazes, mas falta apoio. Foi diante de outras crises que o País desenvolveu grandes projetos por meio de pesquisas, dentre eles, o de extração de petróleo em águas profundas, o pré-sal. Sem contar o sucesso de nossa expansão agrícola, que permitiu aumentar os espaços de cultura em regiões que há 50 anos não se podia imaginar e hoje o País se transformou em um dos grandes celeiros na produção de alimentos. Recentemente tivemos a questão do zika vírus. No começo ninguém entendia porque as crianças nasciam com microcefalia, mas foi a ciência brasileira, com a nossa experiência acumulada em pesquisa básica e nossa massa crítica, que nos permitiu responder ao problema com rapidez”, comenta.
Ao abordar o orçamento da área de CT&I, Guedes Gomes demonstra que a situação pode ser ainda pior do que se observa. “Se pegarmos quanto que representa o investimento em ciência, tecnologia e inovação no orçamento do governo federal, veremos que ele representa 0,08%. Há dez anos, essa rubrica era de 0,1%. Ou seja, só estamos perdendo espaço, e a situação poderia ser pior se não tivéssemos a construção de longo prazo de instituições fortes”, lamenta o presidente do Confap.
Ele também concorda que a falta de investimento é um dos grandes obstáculos para o desenvolvimento do País. “Estamos nessa crise e ao mesmo tempo enfrentando as intempéries da descontinuidade do financiamento da ciência brasileira, como a desidratação do orçamento do CNPq e da Capes. E sem dúvida, as Fundações de Amparo, que complementam o ecossistema de financiamento da ciência brasileira, são profundamente afetadas”, lamenta.
O presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Luiz Davidovich, ressaltou que além de reafirmar a necessidade de investimento na área de CT&I, a pandemia está trazendo uma reavaliação do papel do Estado e das instituições do setor. “Apesar dos cortes sucessivos que tivemos nos últimos anos, a ciência está viva no País e enfrentando as emergências que aparecem. Estas instituições têm demonstrado força fantástica. Universidades adaptando laboratórios para enfrentar crise”, comenta.
Davidovich apontou que, especialmente no Brasil, existe um baixo reconhecimento da ciência básica e defendeu que é preciso reverter essa visão. Ele exemplificou a pressão que o Congresso estadunidense sofre de grandes empresas para que o governo invista em pesquisas nas universidades e institutos de pesquisa. “Nos anos de 2017 e 2018 o presidente dos Estados Unidos enviou um orçamento ao Congresso com fortes cortes na área de ciência, tecnologia e inovação. Mas os congressistas derrubaram. Não é simplesmente porque existe uma compreensão da importância da área para o desenvolvimento para os EUA, acontece que existe uma pressão forte de grandes empresas para que o governo invista em pesquisa e inovação em universidades e institutos. Isso acontece porque as pesquisas básica e aplicada têm riscos e a indústria não quer corrê-los. Eu gostaria que o nosso Congresso tivesse essa percepção e beneficiasse esse setor que é tão importante para o futuro”, lamenta.
Carlos Gadelha, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz Carlos (Fiocruz), chamou a atenção de como a pandemia evidencia as limitações da área de CT&I no País, ao mencionar como exemplo o fato de o Brasil gastar em importações, royalties e transferência de tecnologia US$ 20 bilhões por ano na área de saúde, quase o equivalente ao orçamento do Ministério de Saúde. “Nosso gasto em saúde não está gerando riqueza no País. Na área de ventiladores, nossas importações quintuplicaram nos últimos 20 anos. Temos que ficar de joelhos para comprar componentes. Na área de fármacos, 94% dos materiais que a gente precisa são importados. A gente não pode apenas vender produtos primários e continuar sem gerarmos conhecimento neste país”, destacou.
Gadelha reitera o coro de que para reverter essa situação é preciso aumentar o investimento na área de ciência, tecnologia e inovação para a construção de um futuro. “Ter R$ 4,2 bilhões bloqueados no FNDCT é tirar a possibilidade de enfrentamento dessa pandemia e de outros problemas que afligem a sociedade brasileira. É preciso investir esses recursos na ciência, para que possamos criar um futuro para o País”, afirmou.
O pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Carlos Henrique Brito Cruz, concorda que é preciso mais investimento por parte do governo em CT&I, mas pondera que é preciso fazer com que as empresas também invistam em pesquisa para juntar forças com as universidades e institutos de pesquisa. “Em todos os países que conseguem crescer, existe essa junção. Quando um país investe mais de 1,5% do PIB em P&D, mais da metade desse valor são das empresas. É preciso colocar esse assunto na pauta brasileira para que haja um incentivo para que a indústria tenha seus próprios laboratórios e assim consiga interagir com as universidades e institutos de pesquisas”, afirma o ex-diretor científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
Celso Pansera, coordenador da Iniciativa para Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), fez uma apresentação do trabalho realizado pelo grupo que reúne várias entidades, dentre elas a SBPC, junto aos parlamentares no Congresso Nacional. “No dia 6 de maio completou um ano que lançamos a Iniciativa. E deste então, estamos trabalhando com uma pauta defensiva, porque toda semana o governo tenta retirar autonomia e recursos de universidades e instituições no que tange à produção de conhecimento no Brasil. Temos conseguido frear maiores retrocessos, dentre elas, a retirada do dispositivo que transferiria o FNDCT da Finep para o MCTIC e reverter a crise das bolsas do CNPq. Recentemente conseguimos retirar a extinção do FNDCT da PEC dos fundos”, afirma.
Já João Carlos Salles, presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), defendeu as universidades e os institutos públicos de ensino e lamentou o novo edital do CNPq que exclui as áreas de ciências humanas e sociais do programa de bolsas da iniciação científica. “Alguns colegas até podem nutrir o pensamento de que é uma possibilidade para fortalecer certas áreas. Mas essa visão é perigosa, porque ela compromete o ambiente da universidade. Não devemos nos acomodar”, disse. Para ele, as áreas de ciências humanas e sociais podem contribuir com respostas sólidas, além de favorecer o ambiente natural do trabalho científico.
A presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), Flávia Calé, abordou os sucessivos cortes de bolsas. Ela lembrou que o valor das bolsas de pós-graduação não é reajustado há sete anos. “Este não é benesse, mas remuneração fundamental. Não se faz ciência só com laboratório, mas com pesquisadores”, comentou.
Roberto Muniz, diretor-presidente da Associação dos Servidores do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), igualmente Calé, afirmou que é preciso investir em capital humano e disse ainda que a ciência brasileira está sofrendo bombardeio de todos os lados. “Muitos pesquisadores e funcionários estão se aposentando e não estão sendo recolocados. Outro problema que deve ser ressaltado é que a ciência hoje é feita por coletivos, por sistemas integrados. Mas, infelizmente, o Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia brasileiro, mesmo robusto e que muito contribui para o desenvolvimento do País, tem sido desarticulado e desmontado. Se não ficarmos atentos, não conseguiremos dar respostas a essa pandemia, e continuaremos a ser um país que teria possibilidade de exercer sua autonomia e soberania, mas não a realiza”, afirmou.
Vivian Costa – Jornal da Ciência