O golpe parlamentar-midiático que afastou a presidenta Dilma Rousseff em 2016 aprofundou os retrocessos sociais no país, de forma similar ao ataque das questões ligadas a gênero que marcaram o período da ditadura civil-militar (1964-1985). No entanto, a sociedade brasileira não é mais a mesma de 50 anos atrás e parte da chamada “pauta moral” da extrema direita – que venceu as eleições na sequência do golpe de 2016 – não emplacou, afirma a antropóloga social Miriam Pillar Grossi.
Professora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro da diretoria da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Grossi fez a análise durante a conferência “Gênero e Sexualidade no Brasil em Três Tempos”. O evento fez parte da programação da “Mobilização em Defesa da Ciência” realizada dia 26/10 pela Associação Nacional de Pós-Graduação (ANPG) com apoio da SBPC.
Os “Três Tempos”, segundo ela, são, primeiro, os 21 anos de ditadura; segundo, o período de redemocratização e de governos democráticos (1985-2016) e, terceiro (2016-2021), o retrocesso político em direção ao fascismo que se iniciou com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, consolidando-se com a eleição do presidente Jair Bolsonaro em 2018.
Do ponto de vista social, o período da ditadura foi marcado pela “sexualidade sob controle”. Ao mesmo tempo, o surgimento da pílula anticoncepcional naquela época dá início a uma fase de modernização e maior autonomia individual, embora ainda muito controlado pelos homens. “É um momento de transformação da sociedade, da família, da relação entre pais e filhos, que levam ao movimento feminista e a profundas transformações na sociedade brasileira”, analisou.
O período democrático (1985-2016) trouxe avanços significativos que se traduziram em políticas públicas voltadas às chamadas “minorias”, em especial as mulheres, a comunidade LGBTQIA+, negros e indígenas. “Há um marco com a Constituição de 88 que estabelece uma igualdade de direitos às mulheres, indígenas, quilombolas, LGBTQIA+. O movimento em direção a uma sociedade mais igualitária se reflete na cultura e na mídia”, afirmou.
No período atual (2016-2021), que Grossi define como de “ascensão do novo fascismo, da extrema direita, do neoliberalismo”, tem início um desmonte daquelas políticas públicas e do investimento em ciência e educação, medidas que se iniciaram no governo Michel Temer e se aprofundam com o governo Bolsonaro. “A partir de então vivemos um retrocesso imenso em tudo que diz respeito às questões de gênero, diversidades étnico-raciais e todas as questões inter-relacionais do país”, declarou.
Porém, Grossi destaca que o retrocesso mais recente encontra uma sociedade diferente. Para ela, a sociedade brasileira hoje é “plural no que diz respeito à família, à filiação, a conjugalidade, as formas de viver a vida pessoal, sexual, familiar”.
Assim, o governo que começou com uma ministra da Mulher afirmando que “agora meninas vestem rosa, meninos vestem azul” mostrou, com essa metáfora, a intenção de voltar às relações tradicionais, nas quais os homens mandam, as mulheres obedecem. “Felizmente as pessoas encararam (o “rosa e azul”) como piada”, disse Grossi.
O objetivo da “Mobilização em defesa da Ciência” é pressionar o governo e os parlamentares pela recomposição do orçamento da Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I). O Fundo Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), principal fonte de financiamento da pesquisa científica no país, sofreu cortes e contingenciamento de verbas que prejudicam principalmente o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que perdeu mais de R$ 600 milhões de seu orçamento. As entidades também solicitam a liberação dos R$ 2,7 bilhões que ainda restam do FNDCT no ano em curso.
Assista à conferência da professora Miriam Grossi na íntegra, no canal da SBPC no Youtube.
Jornal da Ciência