PEC dos terrenos de marinha coloca Amazônia na mira da especulação imobiliária

“Temos as margens de rios ocupadas por comunidades indígenas e quilombolas que estão nessas áreas consideradas áreas de marinha há muitos anos. Mas não temos uma definição clara para dizer o que é terreno de marinha e como essas populações vão responder a isso. Como vai ser a transferência de titularidade?”, alerta Luciana Barbosa, coordenadora do GT de Meio Ambiente da SBPC. Proposta tramita no Senado

O Congresso Nacional está a um passo de aprovar a extinção dos chamados terrenos de marinha e seus acrescidos, terras da União na faixa de 33 metros da costa brasileira e nas margens de rios, lagoas e mangues sob influência das marés.

Apesar de ser apresentada como “promessa” para resolver as disputas de posse nas ocupações urbanas e o fim das taxas de ocupação, especialistas alertam para os riscos que a medida reserva para a Amazônia e ao meio ambiente de forma geral.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 39/2011, aprovada na Câmara em 22 de fevereiro, prevê que toda a faixa definida como terreno de marinha: será transferida para ocupantes, mediante pagamento ao governo federal, e para estados e municípios de forma gratuita, ficando em posse da União apenas as áreas não ocupadas, como unidades federais de preservação e concessões públicas.

Os pretendentes à posse nessas áreas terão dois anos para se manifestar e as áreas não definidas poderão ser levadas a leilão, como já prometeu o ministro da Economia, Paulo Guedes. O texto agora segue para apreciação do Senado.

Na Amazônia, a ocupação nas margens dos rios por estruturas que atendem interesses do agronegócio, mineração, especulação imobiliária e turismo pode ser intensificada com a construção de portos e hotéis nas praias de rios.

A dimensão dos efeitos da PEC na Amazônia, considerando os “acrescidos de marinha”, alcança áreas de domínio sobre uma imensa extensão de mangues, rios e igarapés.

No Pará, por exemplo, a influência das marés, que define a demarcação da faixa de 33 metros, segue pelo rio Amazonas, adentra por vários rios (Guamá, Acará, Mojú, Jarí, Tocantins, Xingu, Parú de Leste) e alcança o Tapajós. O efeito da maré chega em Santarém.

“Temos as margens de rios ocupadas por comunidades indígenas e quilombolas que estão nessas áreas consideradas áreas de marinha há muitos anos. Mas não temos uma definição clara para dizer o que é terreno de marinha e como essas populações vão responder a isso. Como vai ser a transferência de titularidade?”, opina Luciana Barbosa, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

O Pará é o estado que concentra a maior área de terrenos de marinha e seus acrescidos no país, com 25% do total. No entanto, o baixo volume de demarcações leva a um vazio de informações sobre a ocupação dessas áreas.

Em 2019, uma fiscalização da Controladoria-Geral da União (CGU) apontou inconsistência em mais de 628 km² cadastrados como terrenos de marinha pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU) no estado do Pará, indicando irregularidades de ocupações destinadas à exploração econômica em  faixa de marinha na região de Belém.

Um Balneário no Tapajós

Alter do Chão está a centenas de quilômetros das águas oceânicas, mas ali o rio Tapajós ainda está sob influência das marés e suas margens são consideradas terrenos de marinha.

Um dos símbolos da disputa de terras em Alter é a construção de um condomínio de sete andares entre os lagos Verde e Carauari, às margens do Tapajós. Os procuradores encontraram irregularidades no licenciamento, que foi realizado pelo município, quando deveria ser federal. “Trata-se de terreno de marinha”, confirmou o MPF ao InfoAmazonia.

Uma Ação Civil Pública pede a paralisação das obras e indica que ela está em Área de Preservação Permanente e em território reivindicado como Terra Indígena Borari.

O MPF fala em “inúmeras construções irregulares” na orla do balneário, que é distrito de Santarém e abriga uma das belas paisagens da Amazônia.

Em janeiro, o InfoAmazonia noticiou quando Alter foi invadida pelos sedimentos do garimpo, que podem incluir mercúrio e dão sinais de que a floresta e o rio estão sendo destruídos em outra parte da margem.

“Outra coisa que nos preocupa é um afrouxamento relacionado ao setor turístico, e até onde esse estímulo vai impactar essas áreas”, opina Luciana Barbosa, lembrando que comunidades mais vulneráveis já sofrem com diversos impactos causados pela ocupação das margens de rios da Amazônia, como o “mercúrio dos garimpos” e “invasões”.

“Aquisição de domínio pleno”

Em 2018, a SPU estimou uma área de 19 mil quilômetros de extensão, considerando os contornos da influência das marés, como sendo passíveis de demarcação como terrenos de marinha, e 106 mil quilômetros em lagos e rios como terrenos nas margens de rios navegáveis, também a serem demarcados.

Ano passado, o presidente Bolsonaro (PL) antecipou os termos para a aquisição dos terrenos de marinha e áreas do governo federal ocupadas. O Programa SPU+, que propõe realizar convênios com estados e municípios, pretende permitir, inclusive, “aquisição de domínio pleno”, a possibilidade de compra total do imóvel da União pelo ocupante, através de aplicativo próprio da SPU. No modelo atual, não há possibilidade de ter a propriedade total em terrenos de marinha ou em margens de rios, que por lei são da União.

Um dos principais articuladores da matéria no Congresso é o senador Esperidião Amin (PP-SC), que como deputado federal comandou a comissão especial que aprovou o texto base da PEC e agora aposta numa votação no plenário do Senado para ainda este ano. Flávio Bolsonaro (PL-RJ) é um dos cotados para ser relator da matéria.

Amin minimiza possibilidades de impactos ambientais da PEC. “A proposta trata de diminuir a insegurança jurídica para foreiros que hoje pagam taxa de ocupação”, disse o senador, emendando que “não muda nada em termos de legislação ambiental, que continua valendo”.

No entanto, por tratar especialmente sobre a questão do direito patrimonial, o texto da PEC não impede, por exemplo, que áreas preservadas e não enquadradas em outros critérios como áreas da União possam ser privatizadas através de leilões ou ocupações não pacíficas. A oposição contesta os termos da PEC e aponta para um jogo de interesses. O deputado Nilto Tatto (PT/SP) se manifestou e disse que a proposta “vai premiar quem ocupou irregularmente áreas de preservação”. O parlamentar afirmou que essas áreas vão sofrer pressão da especulação imobiliária e cita ameaças “aos manguezais e restingas”.

A deputada Joenia Wapichana (Rede-RR) seguiu a mesma linha de Tatto,  “essas áreas são aliadas estratégicas não apenas para a adaptação às mudanças climáticas, mas também para a redução da vulnerabilidade da zona costeira frente aos eventos externos”.

Além disso, o texto da PEC estabelece a regularização para ocupantes não inscritos nos cadastros do Patrimônio da União, desde que a “ocupação tenha ocorrido até cinco anos antes” da publicação da emenda. A deputada Vivi Reis (PSOL), do Pará, chegou a apresentar uma proposta para retirar este trecho da PEC, segundo ela, “para combater a especulação imobiliária e a possibilidade de transferência dos terrenos de marinha para entes privados”. Mas a proposta foi recusada.

Rios navegáveis

Especialistas afirmam que a proposta  não deixa claro o alcance dos efeitos da PEC. Diante da falta de informações oficiais sobre as áreas afetadas, que na sua maioria não estão demarcadas, temem que a medida possa ser estendida   às margens dos rios navegáveis, chamados de terrenos marginais, que não sofrem influência das marés e onde a faixa de domínio da União é de 15 metros. Na Amazônia, esses rios concentram mais de 10% da água doce do planeta.

A SBPC, que prepara uma análise técnica sobre a PEC, aponta a insegurança jurídica para áreas preservadas e ameaças às comunidades ribeirinhas nesses rios. “Implicitamente os rios navegáveis (sem influência das marés) são considerados terrenos de marinha, inclusive para fins de cobrança de taxas, mas o texto da PEC não faz menção direta a eles. Por isso, consideramos que essa PEC é um problema para o meio ambiente e para as comunidades ribeirinhas no que diz respeito aos rios navegáveis. É um problema de estrutura de redação (da PEC), que não cita o texto da lei original”, avalia Luciana Barbosa, coordenadora de Meio Ambiente da SBPC.

Indemarcáveis

Autor de livros e artigos sobre o tema, Paraguassú Éleres, professor de direito fundiário na Universidade da Amazônia (UNAMA) e do Centro de Estudos Superiores do Pará (CESUPA), critica inconsistências no texto da PEC aprovada na Câmara e defende que a discussão sob o ponto de vista patrimonial é incapaz de atender os princípios constitucionais da função social da terra. O professor   reclama que o texto não incluiu os chamados terrenos marginais, definidos inicialmente como terrenos de marinha, fazendo com que a extinção do “instituto de marinha” prometido pelos legisladores seja incompleta e com brechas.

“Não se pensou a questão do ponto de vista matemático, que define a linha preamar e os terrenos de marinha, nem do ponto de vista ambiental, que deveria ter sido incluído nessa discussão”, avalia o professor, que também é agrimensor e perito judicial.

Éleres destaca a confusão da própria legislação brasileira, que em diferentes momentos incluiu as terras de marinha entre os bens da União. Segundo o professor, a definição de terrenos de marinha instituída em 1831 não foi prevista na Constituição de 1946, o que só voltou a ocorrer em 1988. “Tudo que foi definido como terreno de marinha nesse intervalo (1946-1988) poderá ser considerado nulo”.

Ele aponta que eles são “indemarcáveis” conforme prevê o ordenamento jurídico em vigor, principalmente por conta da elevação dos níveis da maré, que teria avançado sobre diversas dessas áreas desde 1831. “Muitas dessas áreas estão submersas e não podem mais serem demarcadas, se levarmos em conta a preamar de 1831”, explica.

De difícil demarcação, a faixa de maré é definida pela altura média do mar em 1831 —ou seja, para demarcar o terreno de marinha é preciso primeiro estabelecer onde estava a média da preamar em 1831—, no caso dos rios, a medida tem como base a média das cheias entre 3 e 20 anos.

O professor afirma que a simples transferência para ocupantes e entes federados não vai acabar com conflitos e disputas nessas áreas, que segundo ele dependem de uma profunda perícia para atestar seus limites.

“Pelo contrário, abrirá espaço para uso político de acordo com interesses locais, e uma série de demandas judiciais. Para cumprir a função social da terra estabelecido na Constituição de 1988, a solução administrativa para essa faixa especial de terras deverá ser feita através de legislação ambiental, não patrimonial”.

InfoAmazonia