É preciso começar a tecer um futuro e pensar o Brasil pós-covid. Ainda mergulhados na pior crise humanitária vivida pelo país, os resultados do estudo do Butantan no município paulista de Serrana confirmam que a vacinação massiva faz despencar o número de pacientes infectados e a mortalidade em até 95%. Assim, com a redução da circulação do vírus pela imunização e manutenção das medidas de proteção individuais, estamos autorizados a pensar na retomada da convivência e da maior parte das atividades coletivas. Muito, e dolorosamente, aprendemos com os efeitos da desastrosa e irresponsável gestão da pandemia do coronavírus. Meio milhão de brasileiros perderam a vida nessa tragédia que se anunciou já na chegada do vírus ao país e que atingiu proporções inimagináveis com o colapso do sistema de saúde e as crise econômica e social. Sem uma mensagem unificada e clara dos gestores ao nível federal, ficamos à mercê do ciclo biológico do vírus.
O sofrimento contagiante com as elevadas taxas de mortalidade e o medo pela real ameaça à sobrevivência representada pelo vírus passaram a dominar nossa forma de viver. O medo é uma das emoções primitivas mais poderosas e os sistemas cerebrais que o controlam são capazes de condicionar nossa forma de ver e de transitar pelo mundo. A esperança oferecida pelos avanços da ciência no entendimento do vírus e na produção de vacinas foi (ainda é?) constantemente enfraquecida por palavras e ações de negação da ciência, de descaso com a gravidade da pandemia e do falso dilema entre preservar vidas (distanciamento social e drástica redução da mobilidade) ou preservar a economia. O mundo do trabalho mudou para aquelas profissões em que é possível o home office, mas aqueles sem condições socioeconômicas de aderir (os trabalhadores informais, os desempregados e as famílias em vulnerabilidade social) pouco se beneficiaram. Com o aumento da desigualdade social, o país acumula 14,5 milhões de desempregados e milhares de famílias vivem o retorno da pobreza e da insegurança alimentar.
Ficaram gravadas na retina as cenas das UTIs lotadas, profissionais de saúde exauridos e por vezes enfrentando falta de equipamentos, de medicamentos e até de oxigênio. Também fica a emoção dos pacientes recuperados no momento da alta sob os aplausos das incansáveis, e muitas vezes heroicas equipes. As universidades e os institutos de pesquisa somaram-se à mobilização científica mundial para oferecer respostas e soluções para o manejo da doença; o Brasil produz vacinas e desenvolve outras que já estão em fase adiantada de testes.
Após 15 meses da primeira morte por covid-19 no País, tempo de luto, indignação e de resistência, e mesmo com a estabilização da pandemia em patamares elevados de novos casos e óbitos, é necessário pensar a reconstrução nacional. Boa parte da estrutura social do país está gravemente afetada devido à temerária gestão de um Estado já enfraquecido pelas políticas neoliberais e uma liderança tóxica mais interessada em confundir e desinformar. A pregação do negacionismo, a disseminação de notícias falsas, as estruturas paralelas e a normalização do risco por parte de muitos compõem o festival de absurdos que assistimos cotidianamente. Sabemos que a solução da pandemia é global e depende de políticas supra-nacionais, mas cada nação tem a responsabilidade da mudança de comportamentos e da necessária reorganização.
Como instituição social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade, a SBPC tem algo precioso a oferecer para a concepção do Brasil pós-pandemia. Diálogo, esclarecimento e ideias para combater a desinformação e o medo; ciência, educação e democracia como os valores a embasar um projeto de país. Destaco alguns pontos para maior elaboração. Defesa da vida e do SUS e atenção integral e universal especialmente aos pacientes com sequelas de longo prazo da Covid-19 (estimado em 10% de todos os contaminados), o combate à obesidade e ao diabetes, e as consequências neuropsiquiátricas que afetam inclusive os que não foram infectados. Revitalizar a confiança da sociedade na ciência e revalorizá-la, em oposição ao negacionismo contagioso que ofende o método científico e que é responsável por tantas mortes que poderiam ter sido evitadas. Ações de popularização da ciência para todos os públicos, especialmente as escolas de ensino fundamental, médio e técnico para que a ciência seja parte de uma cultura humanística mais ampla. Também essencial será enfrentar o verdadeiro apagão educacional em vista do fechamento das escolas, da precária inclusão digital de milhões de famílias de alunos de escolas públicas, da falta de alimentação escolar e do retorno do trabalho infantil que agravaram carências e desigualdades, além dos repetidos ataques políticos e ideológicos perpetrados.
Re-motivar a comunidade científica e acadêmica. A fuga de cérebros é uma triste realidade e a desmotivação de estudantes de pós-graduação e de seus orientadores refletem o desmonte do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em curso. As agências CNPq e CAPES terão em 2021 o menor orçamento em uma década e os recursos do FNDCT continuam distantes do fomento da pesquisa. A recuperação orçamentária das áreas de CT&I e da educação são um imperativo, bem como a revogação da EC 95, a Lei do Teto. Pensar cidades sustentáveis, com soluções de mobilidade com vistas a qualidade de vida, a preservação do ambiente, dos biomas brasileiros e dos povos originários, hoje em risco pela política ambiental do governo, são outros temas para demarcar a volta do Estado social que a visão neoliberal apequenou.
Posicionar conhecimento científico e educação no centro das questões nacionais, e entendê-los como vetores de mudança é o princípio. Educação de qualidade em todos os níveis e ciência como bens públicos globais como alicerces num cenário de reconstrução baseada em ideias e propostas de políticas públicas baseadas em ciência. A SBPC precisará mobilizar-se internamente e motivar a sociedade. Envolvendo a Diretoria, as Secretarias Regionais e as Sociedades Afiliadas, e com a parceria de instituições, Universidades e iniciativas como a ICTP-br e outras. Podemos, e devemos contribuir para um projeto de país mais justo e menos desigual, com esperança e garantia de direitos. Criatividade e integração entre as diversas áreas do saber para colocar o conhecimento à disposição da sociedade e do fortalecimento de nossa fragilizada democracia em tempos de pós-verdade e negacionismo.