Era para ser um ano de festa. O Museu Nacional, a mais antiga instituição científica do País, comemorou 200 anos de sua fundação em junho de 2018. As comemorações, que deveriam se estender por todo o ano, incluíram o lançamento de um selo comemorativo, um fim de semana, nos dias 9 e 10 de junho, com mais de 35 atividades voltadas a crianças e famílias, um seminário promovido pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), de 30 de julho a 3 de agosto, para discutir os desafios e perspectivas dos museus no País. Houve até a assinatura de um acordo com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) prevendo um investimento de R$ 21,7 milhões para o plano de revitalização do prédio histórico, seu acervo e espaços de exposição – no dia 6 de junho, marcando o dia em que Dom João VI criou a instituição no País. O diretor do Museu, Alexander Kellner, tinha um projeto muito bem desenhado para aproximar o incrível acervo, que conta com mais de 20 milhões de itens catalogados, da população. “Eu quero ter um milhão de visitantes por ano. Não é para ter caixa, mas para melhorar a comunicação com a sociedade. Para isso, vamos nos atualizar. E vamos conseguir”, disse, em conferência na 70ª Reunião Anual da SBPC, há menos de um mês e meio, em julho.
Tudo virou cinzas na noite desse domingo, com um incêndio que levou mais de cinco horas para ser controlado. Ainda na manhã desta segunda-feira havia focos de incêndio – risco que impediu uma manifestação de se organizaram em frente ao Palácio. Uma tragédia que poderia ter sido evitada.
Há muito tempo o Museu, que é subordinado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pedia socorro. Em 2015, chegou a fechar para visitação pública por falta de estrutura. Dez das 30 salas de exposição estavam ainda fechadas por problemas estruturais. Uma delas, que sofreu um ataque de cupins, foi reaberta graças uma campanha de financiamento coletivo na internet, que arrecadou mais de R$ 58 mil. Apenas 1% do acervo estava exposto. Os cortes orçamentários nos últimos anos agravaram ainda mais a situação. A primeira parcela da verba do BNDES, que estava para sair, seria justamente para criar um sistema de prevenção de incêndios no Museu. Mas, segundo Kellner, o Museu necessitaria de R$ 300 milhões para executar o Plano Diretor até 2028.
Em nota divulgada nesta segunda-feira, a reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro manifestou a urgência do Governo Federal em promover mudanças no sistema de financiamento das universidades federais do País. “A matriz orçamentária existente no Ministério da Educação não aloca nenhum recurso para os prédios tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e para os museus universitários. O mesmo acontece com o Ministério da Cultura, que igualmente não prevê recursos para tais fins. Este momento devastador deve ser um alerta para as forças democráticas do país, no sentido de preservação do patrimônio cultural da nação”, declarou.
A tragédia é resultado de décadas de descaso de sucessivos governos e da própria sociedade, conforme aponta o antropólogo Otávio Velho, presidente de honra da SBPC. “Estamos todos muito chocados, mas, de qualquer maneira, é preciso que a gente recupere forças e aproveite para fazer uma denúncia geral, contra o descaso atual, mas não apenas, pois isso é resultado do descaso de muitos anos. Isso é responsabilidade do governo e também da sociedade civil brasileira, que não cuida dos seus bens culturais e científicos. Por que ao invés de criar novos museus, que são apenas uma casca, sem acervos como esse do Museu Nacional, não ajudam a manter o nosso patrimônio, que tem história, que representa tanto para a história brasileira?”, questionou.
Velho também avalia que é uma perda irreparável e um momento de luto profundo para o País. Mas, segundo ele, o momento é mesmo de unir forças pela reconstrução dessa instituição. “A luta não é só do Museu Nacional; nesse momento, é de toda a comunidade científica e cultural desse país. O Museu é a face da ciência para o público. Essa é uma perda para a comunidade científica e para toda a sociedade brasileira”, ressaltou.
Para o presidente da SBPC, Ildeu de Castro Moreira, se não há prevenção adequada, se não se faz política pública de preservação, se não existem cuidados mínimos, as chances de acidentes desta proporção acontecer só tendem a aumentar. “As políticas públicas efetivas para preservação do patrimônio histórico do Brasil praticamente não existem, são muito precárias”, diz.
Moreira lembra que a comunidade científica há anos vem reivindicando e propondo políticas públicas para a preservação do patrimônio histórico e científico do País. Algumas delas estão contidas no Livro Azul, documento que trouxe a síntese das propostas finais da IV Conferência Nacional de CT&I, realizada em 2010, para os governantes, gestores e parlamentares. “A formulação contou com a participação de muitos profissionais da área, em particular dos museus e instituições científicas do Rio de Janeiro. Resta dizer que não foram implementadas”, lamenta.
Entre as proposições descritas no Livro Azul estão “criar um centro nacional de referência e pesquisa interdisciplinar em conservação e restauração de patrimônio cultural e científico” e “criar programas específicos para a preservação do patrimônio cultural de C&T, o desenvolvimento de acervos virtuais e a criação de sistemas de gestão de documentos nas instituições de ensino e pesquisa”. Em síntese, os cientistas chamavam a atenção para a importância de uma politica pública para preservação do patrimônio cultural e científico do País. “Essas propostas continuam atuais e se tivessem sido implementadas, tragédias como essa poderia ter sido evitadas”, lamenta o presidente da SBPC.
Segundo ele, é fundamental agora adotar ações pela reconstrução da instituição. “É uma perda inestimável, para o Brasil e para o mundo. São dois séculos de ciência e história nacional ali condensados. É um dever da comunidade científica e dos governos recuperar o que for possível e reconstruir o museu de história natural no Rio de Janeiro que o Brasil merece – o Museu Nacional. Para isto é necessária uma grande mobilização nacional e contar também com apoio internacional,” afirmou Moreira.
Comunidade científica se manifesta
A Unesco divulgou uma nota na manhã de hoje na qual destaca que a tragédia se soma a outras perdas expressivas em museus brasileiros – no Instituto Butantã, em 2010, no Memorial da América Latina, em 2013, no Museu da Língua Portuguesa, em 2015, e na Cinemateca, em 2016.
“O Brasil sofreu um dano irreversível em um de seus patrimônios mais valiosos, um equipamento não apenas cultural, mas também dedicado ao ensino e à pesquisa. Além disso, a edificação do Museu é um monumento histórico, que foi residência da Família Real Portuguesa quando de sua chegada ao País”, declarou no documento.
Estarrecidas, entidades científicas também manifestaram pesar pelas proporções imensuráveis da perda que o incêndio no Museu Nacional representa para o País e para toda a humanidade.
“Morreu, aos 200 anos de idade, o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Com ele, uma parte importante da ciência e da memória do Brasil”, declarou o presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) Luiz Davidovich. Segundo ele, essa foi uma tragédia para a ciência brasileira e para a ciência mundial e mais um golpe para a ciência brasileira, que há anos vem sofrendo um desmonte provocado por restrições orçamentárias. “São 200 anos de conhecimento, de memória, de registros importantes que são perdidos nesse desastre, que reflete o descaso das autoridades com o conhecimento, com a ciência, com a história, com a memória do país. Foi mais um duro golpe para a sofrida ciência brasileira nesses últimos anos, vítima de sucessivos cortes orçamentários. Que esse seja um momento de reflexão sobre a importância do patrimônio histórico do nosso país”, destacou.
A Fiocruz chamou a atenção para que se reflita sobre as políticas públicas que versam sobre a preservação do patrimônio histórico, da cultura, da educação e da ciência e de todo o setor público. “Fruto da dedicação de profissionais durante os 200 anos de existência do Museu, as coleções lá existentes inspiraram gerações de brasileiros e visitantes de todo o mundo, possibilitando a pesquisa e a geração de conhecimento, centrais para a humanidade e para consolidação de nossa posição enquanto nação. Neste momento de profunda tristeza e indignação, devemos denunciar com mais vigor as precariedades motivadas pelas restrições de recursos e as dificuldades de gestão, que geram obstáculos à administração de áreas de tamanha complexidade como é a área de patrimônio científico”, afirma a Fundação em nota.
O CNPq também divulgou nota na qual afirma que o incêndio do Museu Nacional é uma tragédia e uma perda irreparável. “O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que desde sua criação acompanha a trajetória de milhares de pesquisadores, muitos deles com atuação direta no Museu Nacional ou por ele formados, lamenta profundamente o ocorrido, mas mantém a certeza de que o conhecimento adquirido e a força e excelência dos pesquisadores brasileiros – que sempre se esforçaram para manter o Museu ativo – poderão recomeçar e reconstruir, no que for possível, essa história.”
A Academia Pernambucana de Ciência (APC) se manifestou consternada pelo irreversível dano que resultou do lamentável incêndio no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista na cidade do Rio de Janeiro. “Dentre um patrimônio irreparável, destacamos a historia da arqueologia brasileira e de tantos outros campos da ciência perdidos que se fundiam e se confundiam com a própria história do Museu Nacional. O museu mais antigo do País e um dos mais importantes do mundo foi, sobretudo, destruído pela irresponsabilidade do poder público. O incêndio é o reflexo notório do descaso para com a nossa memória histórica, cultural e científica. Estamos prontos para auxiliar os colegas pesquisadores a soerguer o Museu e lutar para que as providências cabíveis sejam tomadas”, disse o presidente da entidade, Jose Antonio Aleixo da Silva.
O Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies) declarou luto pela tragédia. “Nossa história de povo e País queima na nossa frente. Sabemos que esse risco correm praticamente todas as instalações culturais, museológicas e científicas pela falta de recursos para implantar instalações seguras que evite e controle acidentes como esses. Somos todos o Museu Nacional!”, afirmou o presidente da entidade, Fernando Peregrino.
A Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP), por intermédio dos seus GTs “População e História” e “Demografia dos Povos Indígenas”, também lamenta profundamente as perdas irreparáveis ocorridas neste domingo. “Além do valor histórico do seu prédio, o interior abrigava um vasto acervo documental e etnográfico que servia de material de memória e de pesquisa para diversos cursos de pós-graduação e extensão. Sua contribuição também era fundamental para os estudos etnológicos e sobre a história dos povos indígenas no nosso país. A ABEP repudia o descaso com a preservação de nosso patrimônio científico, histórico e cultural e se solidariza com todos os colegas da UFRJ e das instituições que tinham o Museu Nacional como parceiro em suas pesquisas”, declarou em nota.
A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior no Brasil (Andifes) também alerta que, da mesma forma que o incêndio destruiu o patrimônio acumulado ao longo de 200 anos do Museu Nacional, outras instituições correm o mesmo risco. “É um misto de tristeza, pela perda irreparável, e indignação, quando se observa que não temos políticas e ações para proteger tantos outros patrimônios dessa natureza no País”, disse, emocionado, o presidente da entidade, Reinaldo Centoducatte. “Quantos jovens estudantes e quantos pesquisadores a partir de hoje estão impossibilitados de usufruir desse acervo, de realizar estudos importantes para País?”, questionou.
Daniela Klebis – Jornal da Ciência