A pós-graduação brasileira ainda não é diversa. Embora em 2019, pela primeira vez os negros tenham se tornado a maioria no ensino superior brasileiro — ainda que por uma pequena diferença (50,3%) — nos programas de mestrado e doutorado essa representatividade permanece baixa: apenas 18% dos titulados na pós-graduação stricto sensu são pretos ou pardos, segundo dados do Censo do Ensino Superior 2019, publicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). E isso impacta não apenas a diversidade, mas também a qualidade da ciência.
Esse foi um dos pontos discutidos durante a mesa-redonda “Diversidade na Pós-Graduação”, realizada nesta segunda-feira (29) como parte dos eventos do “Dia em Defesa da Pós-Graduação” promovido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O evento foi transmitido pelo canal da entidade no YouTube.
A falta de diversidade também é observada na questão de gênero. Segundo o Censo, as mulheres são a maioria no ensino superior, no entanto, ainda têm pouca presença em áreas ligadas às ciências exatas, como engenharia e tecnologia da informação: elas correspondiam a apenas 13,3% das matrículas nos cursos de graduação na área de Computação e Tecnologias da Informação e 21,6% na área de Engenharia e profissões correlatas. Esses números também vão se “afunilando” na pós-graduação e não se traduzem em cargos mais altos ou em uma maior representatividade entre os docentes: o Censo também mostra que as mulheres eram 46,8% do total de docentes no país em 2019.
“Um dos papéis principais da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas (RBMC) é continuar dizendo: ‘isso é um problema’”, enfatizou Luciana Tatagiba, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e uma das coordenadoras da RBMC. “As meninas não têm estímulo para ingressar na ciência, e quando ingressam na academia, encontram um ambiente bastante inóspito em função do assédio sexual e de todas as barreiras que encontram. A academia não é um ambiente seguro para meninas que ingressam, por conta das diferentes formas de misoginia, de machismo, etc.”, alertou.
LGBTQ+
A comunidade LGBTQ+ enfrenta um desafio talvez ainda maior, visto que ainda não existem estatísticas oficiais sobre essa população no ensino superior brasileiro. Um levantamento da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) de 2019 mostrou que, num universo de 424 mil estudantes de 63 universidades, 16,4% se autodeclararam LGBTQ+, e apenas 0,2% se declararam trans.
“Quantos professores ou professoras trans além de mim vocês conhecem? Quantos recebem bolsa-auxílio Capes? Nenhuma!”, questionou Jaqueline Gomes de Jesus, professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Homocultura. Ela também lembrou que, apesar de importantes, não bastam existirem associações e entidades, é preciso haver uma inclusão efetiva dos diversos grupos. “Nós também temos que estar nesse grande lugar, nessa grande mesa do que é a ciência, do que se considera pesquisa, porque nós também fazemos — muitas vezes não é reconhecido, mas nós fazemos pesquisa”.
Ações afirmativas
Para Cleber Santos Vieira, professor do Departamento de Educação da Unifesp Campus Guarulhos e diretor da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), as cotas são essenciais para levar diversidade à produção científica, pois permite justamente a inclusão desses grupos na ciência. “Se nós pegarmos o plano nacional de pós-graduação de 2011 e 2020, o tema das ações afirmativas é muito tímido, para dizer o mínimo. Nós precisamos avançar no sentido de que o plano nacional para a próxima década cubra as ações afirmativas e recomende a instituição de reservas de vagas para pessoas negras, indígenas, quilombolas, para pessoas trans. Não é possível que o principal documento que organiza a pós-graduação no Brasil deixe passar despercebido um tema tão importante como é a questão das cotas”, afirmou.
Além da reserva de vagas, também é essencial a diversidade nas bancas de seleção dos concursos para docentes das universidades. Afinal, são as bancas que escolhem os candidatos aprovados em muitos cursos de pós-graduação, por exemplo. Vieira também lembra ser preciso fazer valer as legislações e é necessário ir além, com ações afirmativas que visem não apenas o ingresso de estudantes negros, mulheres e pessoas LGBTQ+ no ensino superior, mas sua continuidade na pós-graduação e na carreira científica.
Diversidade é fundamental
Essa diversidade na pós-graduação é essencial porque são os cientistas em formação que produzem boa parte do conhecimento nacional. Portanto, é necessário ter pessoas com diferentes identidades, origens e perspectivas, para produzir um conhecimento mais representativo da população e pensar problemas importantes.
“Diversidade é fundamental”, enfatizou Gomes de Jesus. “O contexto que nós vivemos hoje evidenciou que sem um posicionamento político crítico, esses temas que são raramente falados e são considerados tabus — gênero, sexualidade, pessoas LGBTQ+, populações negra e indígena — acabam sendo utilizados para projetos que valorizam a família tradicional brasileira, e são bolsas investidas para esses tipos de projetos, e no discurso deles não se considera família tradicional a família indígena, ou as mães negras que são mães solteiras, ou famílias homoafetivas”.
Esses diferentes atores podem contribuir de maneira rica com projetos que vão ao encontro dos interesses e necessidades dessas populações, construindo um diálogo com a sociedade. “Nós entendemos que o conhecimento que as mulheres produzem é um conhecimento potente, é um conhecimento de muita qualidade”, afirmou Tatagiba. “É muito importante colocarmos esse conhecimento em diálogo com os outros saberes por atores sociais e agente públicos, no sentido de fazer com que esses conhecimentos que nós produzimos na academia passe a interagir com os outros conhecimentos que estão disponíveis na sociedade”.
Para Miriam Grossi, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e diretora da SBPC, é importante evidenciar e dar visibilidade a todas essas questões, além de dar voz a todos esses atores, para se poder enfim trabalhar por uma mudança. “Apenas 26% dos programas de pós-graduação do Brasil tem alguma ação afirmativa, e esse é um dado bastante preocupante”, apontou. “Nós sabemos efetivamente que é necessário mudar esse sistema, sobretudo porque esse sistema, tal como foi construído, foi marcado por uma série de desigualdades. E nós estamos aqui num momento de urgência de muitas transformações.”
Assista aqui ao evento na íntegra
Chris Bueno – Jornal da Ciência