Os direitos da população indígena, presentes na Constituição de 1988, nunca saíram do papel. Esta é uma das principais ponderações do debate “Independência Inconclusa – O genocídio da população indígena”, promovido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) na última semana.
O evento integrou uma programação para refletir socialmente a Independência do Brasil e defasagens do País, e contou com a participação de Conrado Hubner, jurista e professor da Universidade de São Paulo (USP); Gersem Baniwa, antropólogo e professor da Universidade de Brasília (UnB); Igor Silva de Sousa, indigenista e ouvidor da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas); e Thais Santi, procuradora da República. Os debates foram coordenados pelo presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, e pela diretora da entidade, Marilene Corrêa.
Abrindo o evento, Janine Ribeiro explicou que a SBPC vem realizando anualmente eventos para a reflexão da Independência do Brasil desde 2021, quando se comemorou o 200º ano do marco histórico. Neste ano de 2024, o objetivo foi trazer a Independência nas vertentes de populações majoritariamente excluídas.
“Hoje, 202 anos após a Independência do Brasil, nós queremos apontar o que falta. Sem dúvida que o Brasil teve grandes conquistas neste período, mas nós queremos colocar o dedo em duas feridas, que nós chamamos de genocídios: da população indígena e da população negra”, pontuou.
Diretora da SBPC, Marilene Corrêa complementou que, ao falar da população indígena, inevitavelmente, é falar também da situação da Amazônia. “Essa atividade da SBPC, se é importante para todos nós do Brasil, para a Amazônia, se torna um emblema. Porque aqui nós temos que abordar, de qualquer modo, os impasses da sociedade nacional e da relação do Brasil com a Amazônia. Não só pelo fato de que ela concentra a maior população indígena brasileira, mas porque também ela concentra uma distribuição de populações remanescentes, os quilombolas. Ela também concentra um processo de violência lento sobre as populações originárias, mas um processo de violência também explícito sobre territórios, povos e culturas.”
Procuradora da República, Thais Santi ressaltou a importância da Constituição de 1988, que incluiu os direitos dos povos indígenas, mas que esse reconhecimento também traz graves reflexões. “Por que depois de mais de 200 anos da nossa Independência nós continuamos identificando eventos que podemos caracterizar como genocídios colonizadores?”
Santi afirmou que a visão do indígena no campo político segue ultrapassada, o que reflete no desenho legislativo e na ausência prática dos seus direitos. “Mesmo quando os indígenas passam a ter um estatuto mínimo reconhecido, ou quando, após a Independência, nós lembramos de um indianismo romantizado, na história do pós-Independência sempre que se remete aos povos indígenas, sempre que se identifica a política relacionada aos povos indígenas, o lugar deles é na pré-história. A figura do indígena remete ao passado, a figura do indígena remete a algo que ficou e que não tem lugar no presente.”
Para a especialista, é necessário que o Brasil reconheça publicamente o genocídio indígena – que, em muitos aspectos, é um genocídio planejado e proposital. “Os povos indígenas são vistos como barreiras ao desenvolvimento do País, e quando aparecem desta forma, se mantém um projeto justificado de violência contra eles.”
A procuradora também criticou a lei nº 14.701, que delimita o Marco Temporal – tese jurídica que modifica os critérios para demarcação de terras indígenas, delimitando que os povos indígenas só têm direito às terras que ocupavam ou já disputavam no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
“O Marco Temporal restringe direitos indígenas fundamentais garantidos na Constituição, como o direito ao território. E o direito ao território é um direito inegociável.”
Indigenista e ouvidor da Funai, Igor Silva de Sousa, trouxe outro contexto que vem piorando a situação precária dos povos indígenas no Brasil: os incêndios em seus territórios, que se agravaram com o período atual de seca. Sousa também pontuou que, apesar de em parte serem consequência das mudanças climáticas, a maioria desses incêndios é criminosa.
O representante da Funai também listou outras questões políticas que afetam os direitos desses povos, como a construção da Usina de Belo Monte, o desmatamento nas nascentes do Rio Xingu, e o uso, cada vez maior, de agrotóxicos. “São questões que inviabilizam o bem-viver das populações indígenas, e quando a gente fala desse bem-viver, a gente fala da cultura material e imaterial, da espiritualidade que vem ligada a essas práticas e a floresta, que circunda esse povo.”
Jurista e professor da USP, Conrado Hubner ressaltou as defasagens jurídicas no âmbito dos direitos indígenas, como também trazido nas falas de Santi. “A urgência indígena, que é tão histórica e precede os últimos desenvolvimentos constitucionais do País, é, talvez, a maior dívida constitucional brasileira.”
Hubner afirmou que umas das principais problemáticas do Brasil é que muitos dos avanços legislativos para essa população não são vistos na prática. “A Constituição de 1988 trouxe uma promessa, um compromisso, um acordo e um reconhecimento moral, jurídico e histórico fundamental. Ninguém era ingênuo, na época, para achar que a aplicação desse compromisso seria juridicamente e politicamente simples, mas, de fato, 36 anos depois, nós ainda estamos lutando por questões óbvias, que esperávamos que já estivessem resolvidas.”
O especialista também criticou o Marco Temporal, que chamou de “fraude interpretativa”, e questionou o papel do STF neste debate, já que o Marco Temporal surge em 2009, quando foi usado pelo STF como um dos critérios para a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, localizada em Roraima.
“É preciso que o STF perceba que não basta julgar direitos fundamentais, é preciso reconhecer a urgência de certos direitos fundamentais. O Marco Temporal não é só uma fraude interpretativa, o STF levou entre 11 e 12 anos com o caso na gaveta. E aí, quando a democracia brasileira já estava pegando fogo, ele reconheceu, só em 2023, essa tese como inconstitucional. No fim, é a renúncia da jurisdição e a transformação de direitos constitucionais em ativos de negociação, com o objetivo cínico de pacificação. Isso é muito grave.”
Encerrando as falas do evento, o antropólogo e professor da UnB, Gersem Baniwa, trouxe apontamentos como membro de um povo indígena, o povo Baniwa, que vive na terra indígena Alto Rio Negro, no Amazonas.
Para Baniwa, os indígenas são assassinados por serem indígenas, e essa violência ocorre por dois grandes motivos. O primeiro é a continuidade da visão racista da humanidade com relação a esses povos. “Essa visão duvida e questiona a própria natureza humana dos povos indígenas. É como se fossem humanos ‘de menos’, humanos inferiores. Isso é percebido desde a chegada dos primeiros portugueses no Brasil, mas também em todos os europeus pelas Américas. Logo se buscou inferiorizar essas sociedades porque isso abria uma justificativa, um caminho, um mandato para toda a escravização, dominação e violência aos indígenas, o que, para mim, muda pouco no comparativo com os tempos atuais.”
Já o segundo ponto é o projeto econômico dominante no mundo, o capitalismo. “É um modo de vida que está baseado em uma determinada visão econômica que tem uma visão de sociedade totalmente anticósmica. É anti-planeta, e também anti-natureza, porque a natureza é um produto, é simplesmente um valor econômico e material que deve ser explorado sem limites. E sendo anticósmica e anti-natureza, o capitalismo acaba sendo anti-indígenas”, conclui.
A mesa “Independência Inconclusa – O genocídio indígena no Brasil” está disponível no canal do YouTube da SBPC.
Rafael Revadam – Jornal da Ciência