Em seu segundo mandato na presidência da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), organização que luta há 72 anos pelo desenvolvimento científico do país, Ildeu de Castro Moreira critica a queda de recursos para a área desde 2015 e classifica o momento atual como de grande desestímulo aos pesquisadores. Segundo ele, os cortes orçamentários têm dificultado a manutenção de laboratórios e provocado a evasão de pessoas que querem seguir a carreira científica.
Em entrevista ao JU, o professor do Instituto de Física e do Programa de Pós-graduação em História das Ciências da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) conta que um dos embates mais recentes da organização com o governo federal é pela manutenção de projetos de apoio à ciência básica, que estão ameaçados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Em defesa da ciência, a organização realizará nesta quinta-feira uma marcha virtual com diversas atividades sobre o papel da pesquisa no combate à pandemia de coronavírus e as dificuldades atuais para o desenvolvimento científico para o país.
No ano passado, a educação e a ciência sofreram desmontes como cortes orçamentários, descrédito de gestores públicos e tentativas de redução da autonomia. Como avalia essas ações e qual o papel da SBPC neste momento?
A SBPC foi criada em 1948 e participou da pressão pela criação de um ministério para a ciência, pela inclusão de um capítulo para a área na Constituição e pela implementação de órgãos de apoio, como a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] e o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Atualmente, temos 146 sociedades científicas afiliadas, de todas as áreas do conhecimento, que agem em conjunto conosco. Temos historicamente defendido a Ciência, independentemente dos governantes e dos partidos que estão no poder. Mas, nos últimos anos, essa questão ficou mais crítica, principalmente a partir de 2015, quando começou uma redução maior de recursos, que se acentuou nos anos seguintes. Esse é um ponto central da nossa briga: poder ter recursos adequados para a Ciência, a tecnologia e a inovação no país.
E a comunidade científica cresceu, então estamos vivendo uma situação de desestímulo muito grande, com laboratórios que não estão conseguindo funcionar adequadamente e jovens que estão buscando outras possibilidades. Estamos vivendo uma evasão de pessoas que querem exercer a profissão de cientista.
Especificamente em relação às universidades federais, houve uma redução orçamentária de 30% em 2019 e de 15% em 2020. Qual o impacto dessas medidas na ciência brasileira?
As universidades federais têm um papel muito importante, pois são responsáveis por grande parte da pesquisa feita no Brasil, assim como algumas estaduais. A produção científica brasileira hoje está em 13.º lugar no mundo porque cresceu muito nas últimas décadas, mas essa produtividade não depende só das universidades. É preciso que os governos tenham políticas de inovação, o que não existe. O Brasil está andando para trás do ponto de vista da industrialização, e a gente está com uma dependência cada vez maior da importação de produtos com valor agregado maior de ciência e tecnologia. A ciência brasileira tem um potencial muito grande, com uma estrutura relativamente espalhada pelo país e com a formação de cerca de 20 mil doutores por ano, mas precisa ser encaixada em um projeto nacional mais amplo, que permita que a economia se desenvolva.
O ano passado também ficou marcado por cortes de bolsas de pesquisa, ação que foi repetida em 2020. Qual a importância desses auxílios para a produção científica nacional?
A manutenção das bolsas foi uma questão de intensa luta da comunidade científica no ano passado. As bolsas de iniciação científica são decisivas para atrair os jovens para a carreira de ciência e tecnologia. É um programa muito exitoso que o Brasil tem e que deveria ser valorizado, não desprestigiado ou deslocado de seu objetivo principal. As bolsas de mestrado e doutorado, que o Brasil tinha em número significativo, mas agora estão diminuindo, também são muito importantes, assim como as de estudo no exterior. A China avançou muito nos últimos anos porque teve um programa extenso de estudo no exterior, mas o Brasil recuou em sua participação mundial.
Atualmente, também temos visto um descrédito governamental e de parte da sociedade às ciências humanas e sociais. Qual a posição da SBPC diante desse cenário?
Em várias áreas da sociedade, existe um preconceito contra as ciências humanas e sociais que prevalece nos governos que querem resultados mais imediatos. É como se essas áreas não fossem importantes para a sociedade, mas são em vários aspectos, inclusive nos tecnológicos. A SBPC valoriza todas as áreas do conhecimento e destaca a importância da qualidade das pesquisas. Para a ciência básica funcionar, ela quem que ser ampla e abranger todas as áreas. Somos contra esses preconceitos e essas delimitações que excluem alguns setores.
Neste ano, a SBPC enviou duas cartas ao ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações Marcos Pontes criticando as portarias 1.122 e 1.329, que definiram as prioridades da pasta. Quais as principais reivindicações da organização?
Essas portarias estabeleceram como prioridade do ministério até 2023 exclusivamente as áreas tecnológicas. Elas são importantes, e é direito do governo escolher prioridades, nossa crítica não vai nesse sentido. Criticamos o fato de que um ministério que tem a palavra ciência, e que inclusive foi criado por pressão da comunidade científica, queira excluir linhas para a ciência básica, como o Pibic (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica), os INCTS (Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia) e o edital universal, oportunidade para jovens pesquisadores de todas as áreas. São programas basilares da ciência brasileira que não podem ser descontinuados.
A SBPC chegou a acionar o Legislativo ou o Judiciário por causa do desmonte da Ciência?
Sempre tivemos uma atuação importante no Congresso e, neste ano, conseguimos uma importante vitória pela não extinção do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Ele é o maior fundo de apoio para a pesquisa do Brasil, mas, infelizmente, 90% do recurso está em uma reserva de contingência. Também conseguimos uma mobilização intensa para o pagamento das bolsas do CNPq, entregando um abaixo-assinado com a participação de 1 milhão de pessoas para o presidente da Câmara. Recentemente, também comunicamos ao presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) que a Constituição não está sendo cumprida, pois o artigo 218 diz que a pesquisa científica básica é prioritária, o que não está acontecendo.
Como a SBPC tem lidado com os casos de ataques e perseguição a pesquisadores?
A gente tem sofrido nos últimos anos, no Brasil e no mundo, alguns ataques à liberdade de pesquisa que buscam desqualificar a Ciência em alguns aspectos, inclusive com perseguição a pesquisadores, como aconteceu agora em Manaus. A liberdade de pesquisa é uma questão fundamental que nos preocupa muito e temos sempre nos manifestado contra essas atitudes, destacando a importância da Ciência.
Nesta quinta-feira, a SBPC convocou uma Marcha Virtual pela Ciência. Qual o objetivo da ação
Nos últimos três anos, organizamos marchas pela ciência em várias cidades e no Congresso. Neste ano, em função da pandemia, estamos fazendo uma marcha virtual, que terá diversas atividades ao longo do dia. Colocamos a programação completa no site da SBPC e convidamos a todos para acompanharem e participarem, inclusive fazendo perguntas aos pesquisadores. Teremos discussões sobre como combater a pandemia e sobre a atual situação da ciência brasileira. Falaremos, por exemplo, sobre as dificuldades que a gente tem e as ações contrárias à liberdade de pesquisa. O principal objetivo é mostrar que a ciência é uma atividade social fundamental para a sociedade, que é utilizada para melhorar as condições de vida das pessoas, preservar a saúde e o meio ambiente e desenvolver uma economia mais sustentável, mas ela precisa de políticas públicas e apoio social.