O astrofísico irlandês Tom Ray veio ao Brasil na última semana participar do “Encontro Internacional do Centenário do Eclipse de Sobral” com uma missão muito especial: trazer de volta à cidade cearense o instrumento que registrou, em 1919, as imagens do eclipse solar decisivas para comprovar a Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein.
A lente de 4 polegadas e o celóstato de 8 polegadas pertencem ao Observatório Dunsink, do Instituto de Estudos Avançados de Dublin (DIAS), na Irlanda, e foram emprestados por dois meses à Sobral, por ocasião das celebrações do centenário do eclipse. As duas peças foram fabricadas pelo irlandês Howard Grubb, um dos mais famosos fabricantes de telescópios do mundo no início do século XX, conforme contou Ray, que é professor do DIAS.
O celóstato reflete a luz do céu em um telescópio fixo, e a lente foca a luz na placa fotográfica. Foi assim que foi registrado, no dia 29 de maio de 1919, o eclipse total do Sol que confirmou, pela primeira vez, o que o físico Albert Einstein havia previsto anos antes: a luz de uma estrela, ao passar próxima ao um corpo de massa muito grande, como o Sol, se curva. Einstein previu também o valor do ângulo de deflexão usando a sua nova Teoria da Relatividade Geral, que havia elaborada em 1915. O valor previsto era o dobro do ângulo calculado a partir da física newtoniana.
Duas expedições foram organizadas naquele ano para observar esse eclipse, uma para a Ilha do Príncipe, na costa oeste da África, liderada pelo astrofísico britânico Arthur Eddington, e com seu assistente Edwin Cottingham; e outra para Sobral, no Brasil, com os astrônomos Charles Davidson e Andrew Crommelin. Para ambas as localidades foram levados telescópios com lentes de 13 polegadas. Na Ilha do Príncipe choveu, o que comprometeu a qualidade das fotografias tiradas. Só duas, e com qualidade razoável, puderam ser aproveitadas. Já em Sobral, o dia amanheceu nublado, mas um pedaço do céu se abriu bem no momento da fase total do eclipse. No entanto, as fotografias registradas pelo telescópio principal (de 13 polegadas) não ficaram suficientemente nítidas por um problema de foco.
Por sorte, ou excesso de precaução, a equipe que veio ao Brasil trouxe um instrumento reserva, composto pela lente de 4 polegadas associada ao celóstato de 8 polegadas, fabricados por Grubb. E foi esse instrumento que fez as 7 fotografias com maior qualidade e que incluíram 7 estrelas na borda do Sol.
“A principal causa da baixa qualidade das imagens feitas com o telescópio principal é atribuída ao mau funcionamento do celóstato acoplado ao telescópio de 13 polegadas que veio para o Brasil, devido à dilatação em função do calor do dia, pois os ajustes de foco foram feitos à noite, a uma temperatura mais baixa. Isso acabou fazendo com que as imagens obtidas com essa lente não pudessem produzir resultados robustos”, explica o físico e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), Luís Carlos Crispino.
O telescópio de 4 polegadas, por ter uma abertura menor, precisava de uma exposição maior que o que tinha a lente maior, cada fotografia durando aproximadamente meio minuto, para acumular luz suficiente para registrar uma imagem. “Este instrumento foi operado por Crommelin. E com essas fotos, as estrelas saíram nítidas. Se comparadas com as outras imagens registradas, elas foram excelentes. Isso permitiu, portanto, realizar medidas de maior precisão. Se dependesse só do telescópio maior, dificilmente os resultados obtidos em 1919, em Sobral, seriam aceitos da maneira que foram para a comprovação da Teoria da Relatividade Geral”, enfatizou Crispino.
O professor comenta que esse instrumento não teve ao longo dos anos o reconhecimento que merece por parte da comunidade internacional. “É um instrumento que foi relegado ao segundo plano. Ele veio como um instrumento de reserva, mas assumiu o papel de instrumento principal. E isso não ficou devidamente registrado na história, segundo a opinião de vários cientistas estrangeiros da área”.
Ray fala com orgulho que o celóstato Grubb e a lente de 4 polegadas salvaram o dia. “É fantástico estar aqui no Brasil para marcar este centenário e destacar o papel significativo que a Irlanda desempenhou no teste da Teoria de Einstein”, disse.
Resgate histórico
O astrofísico irlandês contou que o DIAS solicitou à Inglaterra a devolução do instrumento em 1947. “Pelo que li dos documentos que encontrei, quando solicitaram o retorno do equipamento, ninguém sabia seu significado para o experimento de 1919. Por isso foi difícil reencontrá-lo. A lente ficou guardada no porão do Observatório do DIAS por quase 50 anos. E sabíamos da existência de dois celóstatos como o que foi utilizado em Sobral, um estava no Observatório de Greenwich, e outro, na Royal Irish Academy. Por sorte, descobri nos documentos que havia um número de registro no objeto, e identifiquei que o celóstato usado em 1919 era o da Academia Irlandesa.”
Há poucos meses, no percurso de recuperar a história por trás do experimento de Sobral para as celebrações do Centenário do Eclipse, o presidente da SBPC, Ildeu de Castro Moreira, descobriu que o instrumento ainda existia e que estava no DIAS. Era o momento perfeito para trazê-lo de volta à cidade. “Entrei em contato com o Tom Ray, que foi muito gentil e, também, se entusiasmou para trazer o celóstato e a lente ao Brasil, para o encontro internacional de maio. O prefeito de Sobral, Ivo Gomes, e o secretário de educação Herbert Lima toparam também o desafio e o Museu do Eclipse foi escolhido para providenciar a vinda dos equipamentos e exibi-los. Durante um tempo os trâmites caminharam lentamente, e quando não se acreditava mais que seria possível superá-los para transportar o instrumento em tempo, a SBPC assumiu a empreitada com intensidade e em poucos dias a coisa se resolveu a contento”, conta. Ele, a secretária regional da SBPC no Ceará, Cláudia Linhares, e Luiz Dionísio (do setor financeiro da SBPC) foram imediatamente atrás de resolver todas as providências necessárias – autorização para trazer, contrato com empresas de transporte de Dublin para Fortaleza e de lá para Sobral, o seguro e a liberação nas duas alfândegas, da Irlanda e do Brasil.
O equipamento pertence ao DIAS, mas também é propriedade do Estado Irlandês e da Royal Irish Academy. “Tivemos, então, que conseguir a autorização dessas três instâncias irlandesas, que exigiram um seguro para a peça e a responsabilização do Museu do Eclipse pela guarda do equipamento pelos dois meses que permanecerá lá”, conta Linhares. A SBPC e a SBPC-CE arcaram com todas as despesas com o trâmite e com todo o processo burocrático. “Parece que foi mais fácil trazê-los em 1919 do que agora, do ponto de vista burocrático,” comenta Moreira.
As peças chegaram em Fortaleza no dia 28 de maio, dia em que começou o “Encontro Internacional do Centenário do Eclipse de Sobral”. O proprietário da transportadora trouxe em seu próprio carro o instrumento até Sobral, por entender que se tratava de uma carga muito valiosa e delicada. “Foi uma saga intensa, mas conseguimos montar o instrumento e deixar tudo pronto no dia 29 à tarde, horas antes da cerimônia de reabertura do Museu do Eclipse”, relata Moreira. “Foi uma profunda emoção quando vimos que havíamos conseguido”, acrescenta Linhares. A ajuda e a colaboração de Tom Ray, ajudado pelo entusiasmo da esposa que o acompanhou a Sobral, foram decisivas.
A celebração nesta semana do Centenário do Eclipse de Sobral, e o retorno da peça à cidade, é uma oportunidade de resgatar a devida importância, na história da ciência mundial, da expedição de Sobral, deste instrumento utilizado para observar e registrar o fenômeno, e também das pessoas que participaram dessa história. “Crommelin, esta lente, este celóstato, assim como o professor Tom Ray, que trouxe de volta o equipamento agora, são irlandeses. É um resgate da própria história deles”, afirma Crispino. E é o mesmo para nós, um resgate de nossa própria história, conforme conclui o professor da UFPA: “O instrumento que deu a Sobral a notoriedade mundial há cem anos, depois de uma longa jornada, volta ao lugar que consagrou há um século.”
Para o presidente da SBPC, a vinda deste equipamento, que contribuiu decisivamente para uma grande transformação na ciência e em nossa visão de mundo, além de ter tornado Einstein no cientista mais conhecido de todos os tempos, significa muito para Sobral e para o Brasil: “A realização das diversas atividades comemorativas do centenário do eclipse de Sobral, organizadas na cidade pela SBPC e pela Prefeitura local, apoiados pelo governo do Estado do Ceará, foram muito significativas e contribuíram para espalhar pelo Brasil e pelo mundo a importância deste acontecimento para a ciência. De fato, como disse Einstein, o sol luminoso de nossa terra ajudou a resolver o problema que ele havia formulado.”
A lente de 4 polegadas e o celóstato ficam expostos no Museu do Eclipse de Sobral até o mês de julho, sob a responsabilidade do Museu do Eclipse e da Prefeitura de Sobral.
Daniela Klebis – Jornal da Ciência