Na noite da quarta-feira (4/5), a biomédica Helena Bonciani Nader quebrou um importante paradigma para as mulheres cientistas ao assumir o posto de presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Nader será a primeira mulher a comandar a centenária instituição em 106 anos, uma conquista que ela espera abrir caminho para muitas outras mulheres brasileiras.
Nader foi eleita em 29 de março em chapa única. Além dela como presidente, quatro mulheres estarão assumindo a direção da ABC: a ecóloga Mercedes Bustamante; a médica Patrícia Torres Bozza Viola, a química Maria Domingues Varga e a engenheira agrônoma Mariângela Hungria. A nova Diretoria conduzirá a instituição por três anos (2022-2025).
Presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a qual presidiu entre 2011 e 2017, e membro titular da ABC, também é membro da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp) e da Academia Mundial de Ciências (TWAS, na sigla em inglês).
Nader é uma cientista que pesquisa a heparina, um composto que evita a coagulação do sangue e impede a formação de trombos. Como professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde se graduou em ciências biomédicas, já publicou mais de 380 artigos em qualificadas revistas científicas internacionais e já formou 46 mestres e 51 doutores. Como pesquisadora, acumula diversos prêmios, incluindo o Almirante Álvaro Alberto de Ciência e Tecnologia 2020, concedido pelo CNPq, e mais recentemente o Prêmio Carolina Bori Ciência & Mulher (2020), concedido pela SBPC.
Aos 74 anos, mãe de uma filha e avó de uma menina de três anos, a paulistana Nader cultiva uma imagem de simplicidade. Frequentemente trajando jeans e camisetas básicas, sem maquiagem, ela é o tipo que arregaça as mangas e conversa com quem for – de presidente da República a deputados, de professores a sindicalistas – na militância em defesa da Ciência, Tecnologia, Inovação (CT&I) e Educação brasileiras.
Na segunda-feira (2/5) ela deu uma entrevista exclusiva ao Jornal da Ciência Online para falar de seus desafios à frente da ABC. Confira os principais trechos:
Jornal da Ciência – Como a ciência brasileira se encontra hoje, na sua visão?
Helena Nader – A ciência brasileira, apesar da tragédia de financiamento, vai muito bem no sentido da produção científica, segue apresentando números bastante relevantes, com cientistas brasileiros nas listas de pesquisadores mundiais de alto impacto. Mas a inovação vai muito mal porque depende de vários outros fatores e marcos regulatórios. E fazer negócio no Brasil é uma situação bastante complicada. Além disso, o empresário brasileiro – não todos – ainda não entendeu que sem inovação vai ficar à deriva.
JC – Falta orçamento?
HN – Os governos não acreditam em educação e ciência, porque se acreditassem não teriam cortado recursos. Hoje o financiamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) é simplesmente para pagamento de salários. Mais grave ainda: os institutos ligados ao Ministério, que são orgulho nacional, vão desaparecer pela não reposição de quadros. Uma instituição como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, não está repondo quadros há anos, no Museu Goeldi a mesma coisa e estou falando só de alguns. Significa decretar o fim. O que está acontecendo é muito grave. Diferentemente dos EUA, no Brasil se faz política de governo, não existe política de Estado para a educação e a ciência. Está escrito na Constituição, mas não se cumpre.
JC – A Sra. participou da articulação para aprovação do Marco Legal de C&T (Lei 13.243/2016) que dispõe sobre estímulos ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica e à inovação. Que balanço a Sra. faz dos seis anos de vigência dessa legislação?
HN – Tenho muito orgulho (de ter participado). A palavra ciência básica está lá graças a mim, porque tinha sido retirada. A legislação é ótima, só falta a gente conseguir praticá-la. O problema é que os órgãos de controle ainda não estudaram com o devido carinho tudo que está escrito ali e continuam legislando e fiscalizando pelos valores antigos. É um complicador. Teríamos que fazer o que estamos fazendo, cada vez mais reuniões com eles, para explicar, para juntos poder colocar o Brasil na posição que merece.
JC – Quando a senhora diz “com eles”, a quem se refere?
HN – O sistema de controle, o Tribunal de Contas, procuradorias, eles não leram, continuam com a legislação do passado. Em algumas instituições se conseguiu, mas é raro.
JC – Em países como EUA e Coreia do Sul, por exemplo, as empresas contribuem com mais de 70% do total investimento em CT&I, enquanto no Brasil essa participação é mínima. Por que isso acontece, na sua visão? Como atrair o interesse das empresas para o investimento em CT&I?
HN – Primeiro, o Estado brasileiro tem que demonstrar para as empresas que a CT&I é importante. Se o Estado não acredita, não adianta querer convencer os empresários. O ‘agro é pop’ porque tem ciência, tem tecnologia e tem inovação. E mesmo a Embrapa está sendo subfinanciada pelo governo, ou seja, a ‘galinha dos ovos de ouro’ também está sendo aniquilada. Vou te dar um exemplo: o Brasil ocupa o 57º lugar entre 132 países avaliados, no Índice Global de Inovação (IGI). Sabe quantos bancos brasileiros estão entre os mais rentáveis do mundo? Quatro. São quatro do Brasil, quatro dos EUA e dois do Canadá. Tem alguma coisa que já define o que o Brasil resolveu fazer.
JC – Como se explica isso?
HN – Nós tivemos reuniões com pessoas do Ministério da Economia que disseram: ‘quando o Brasil precisar, compra tecnologia’. Precisa saber se tem algum que vende. É projeto de Nação. Eu não culpo o empresário, tem empresário que está investindo. O que houve nesses outros países é incentivo. A vacina da Moderna e da Pfizer não veio com dinheiro só dos empresários, o governo americano colocou dinheiro na indústria para sair a vacina. É projeto de Estado.
JC – Falando em vacina, a pandemia de Covid-19 provocou a paralisação de tudo, inclusive a educação em todos os níveis. Na sua opinião, que lição ficou desses dois anos de paralisação? Mudou o papel do Ensino a Distância (EAD)? Como pensa que o ensino deve ser feito daqui em diante?
HN – O que sei é que aprendemos muito com pandemia. Primeiro, que não existe equidade no Brasil. Então se a aula online funcionou para alguns grupos, para a maioria do povo brasileiro não funcionou, porque a maioria não tem acesso à comunicação, a redes estáveis, a computadores. Mostrou a tristeza que são as diferenças nessa nação. Mostrou também que a criança sente falta da presença. O online pode ser bom para algumas coisas, mas não é o todo para o ensino fundamental e médio. Mostrou também o número de pessoas que abandonam a escola. Isso é trágico. Se eu fosse o ministro da Educação, estaria preocupado, o número de pessoas que fizeram o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) foi muito menor que nos outros anos, o que indica que os jovens estão abandonando a escola. Eles têm que sustentar família. Como uma Nação pode ser chamada como tal se não cuida das suas crianças?
JC – Ou seja a questão é muito mais complicada, não tem a ver se o ensino é EAD ou híbrido ou presencial.
HN – Não tem. Não tenho nada contra o EAD, para algumas coisas até serve muito bem, mas não vamos generalizar.
JC – A Sra. já se disse contra a eleição para gestores de universidades, defendendo que os cargos devem ir para os mais capazes. No governo Bolsonaro, o sistema atual de escolha, a lista tríplice para reitores, foi implodido, com o presidente escolhendo pessoas de forma contrária aos interesses da comunidade universitária. Como vê hoje essa questão da indicação de vagas e de autonomia universitária?
HN – O governo atual implodiu tudo, mas não construiu nada. A universidade está destruída, e foram as universidades públicas que fizeram o Brasil chegar aonde chegou. Mas não tem respeito, as pessoas não acreditam na educação. Quero dizer que nem sei se esse sistema de eleição para reitor é o melhor modelo. Olhando a maior parte das universidades (no exterior), vejo que várias têm comitês de busca. Se isso seria viável no Brasil, não sei dizer. Mas não aceito o que o governo Bolsonaro fez de que aqueles que foram eleitos não serem nomeados por um revanchismo político partidário.
JC – A Sra. é a primeira mulher a presidir a ABC, uma instituição que tem 106 anos de existência. Na sua opinião, o que isso revela sobre a comunidade científica brasileira?
HN – Que as mulheres têm um longo caminho pela frente. As mulheres são maioria, mas ainda não nos altos cargos. No entanto, se olhar como academia de ciências, a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos (NAS, sigla em inglês), que é bem mais antiga, tem 200 anos, só teve uma mulher presidente agora, que inclusive foi reconduzida (Marcia Mc Nutt, eleita em 2016). A Royal Society (Reino Unido, fundada em 1660), a Academia Francesa de Ciências (ASF, sigla em francês, fundada em 1699), nunca tiveram uma mulher no comando. Isso significa que o Brasil, apesar de tudo alcançou isso e eu espero que isso signifique um exemplo. Não que eu sirva de exemplo, mas um exemplo para as meninas e mulheres que elas têm que lutar para atingir, ninguém vai abrir porta, te garanto.
JC – Mesmo sem querer, será um exemplo.
HN – Sendo muito sincera, eu nunca pensei em um dia ser nem presidente da SBPC nem da ABC, aconteceu na minha vida. Eu quero que as meninas, as mais jovens e as mais velhas, estejam cientes que ninguém tem o direito de dizer não, elas têm que acreditar nelas mesmas, isso aprendi com meu pai, minha mãe e meus professores. Eu sou uma pessoa de sorte, tive grandes amigos, grandes mestres, grande família.
JC – Por que, apesar de serem maioria entre os pesquisadores, as mulheres ainda batem no tal teto de vidro da ciência e tecnologia? Como enfrentar isso?
HN –Tem que mudar a educação desde criança, é preciso ensinar o respeito mútuo. Mas isso não é uma característica só da ciência, é em todas as profissões. Quantas vezes as mulheres vão para entrevistas de emprego e perguntam “você é casada? ” “Quer ter filhos? ” Para os homens ninguém pergunta isso.
JC – Quais seus planos à frente da ABC? O que acha que pode fazer diante de um cenário tão adverso para a CT&I como o atual?
HN – Eu quero poder continuar o trabalho fantástico feito pelos presidentes anteriores, pelos professores Eduardo Krieger, Jacob Palis, Luiz Davidovich, que fizeram uma revolução na ABC. Quero poder contribuir para o crescimento da Nação brasileira, mas não estarei sozinha. É uma diretoria onde nós temos treze pessoas eu inclusive, de diferentes áreas do conhecimento, diferentes regiões do Brasil e somos cinco mulheres.
JC – Quais são suas prioridades?
HN – Educação vai ser uma prioridade. Marco regulatório, diálogo com o Parlamento é fundamental, queremos percorrer todos os ministérios. Veja que o Ministério do Meio Ambiente é pura ciência e nada está acontecendo com base na ciência. Na hora em que você deixa garimpeiros entrarem em terras indígenas está desrespeitando, além da constituição, toda uma cultura e os Direitos Humanos. Tudo isso envolve ciência. Quando você olha o Ministério da Infraestrutura, é ciência pura. Utilização de portos, aeroportos, grandes metrópoles, é ciência. A ciência está no dia a dia, é que nossos governantes ainda não perceberam isso. É trágico.
JC – Como vê o momento político atual, as eleições de outubro?
HN – Uma coisa que tenho insistido e que considero relevante, é que as pessoas focam a discussão na eleição para o Executivo. Mas tão relevante quanto, até diria que a força é até maior, é o Legislativo. Porque é o que cria as leis e, dentro do modelo de presidencialismo brasileiro ele é que faz a negociação. Essa palavra tem uma conotação negativa hoje no Brasil, mas é com quem você tem que dialogar. A maioria das pessoas esquecem em quem votou e esquecem que, ao votar em deputados, estão dando àquele ou àquela pessoa o direito de falar em nome deles. Quando eles votam e falam, inclusive alguns absurdos, na hora da votação, estão falando em seu nome, porque você passou uma procuração ao eleger aquele indivíduo.
JC – Qual o peso do Parlamento para a CT&I?
HN – O diálogo com o Parlamento, a nível Federal, e com as câmaras a nível estadual, é fundamental para a gente conseguir o Brasil que a gente almeja. E claro, tem que exigir dos candidatos qual o seu programa. Por que ele quer ser candidato? Qual o projeto dele? Para que está se candidatando? Vai ser uma eleição complicada – já tivemos várias manifestações do que nos espera. Vai ter polarização muito grande e não é bom para ninguém.
JC – Qual sua expectativa para a eleição para presidente?
HN – Não vou falar da minha preferência política. O que eu quero é que o povo, quando votar para presidente pense no que ele vai fazer. O que precisamos? Desenvolvimento sustentável. Isso quer dizer sustentável para nós que estamos aqui e para aqueles que virão. Não podemos acabar com o planeta. O social: não podemos continuar com as iniquidades de hoje. Que cada um leia os projetos de governo, que votem com consciência e não com o fígado. Eu particularmente vejo que na educação e na ciência esse governo veio para destruir, mas isso é a minha opinião. A ABC vai continuar na luta para rever esse quadro.
Janes Rocha – Jornal da Ciência