Pandemia de covid-19. Mudanças climáticas. Segurança alimentar e redução da pobreza. Direitos humanos e igualdade de gênero. Esses são alguns dos principais objetivos – e desafios – do multilateralismo na atualidade, tema da conferência apresentada na última sexta-feira (23), durante a 73ª Reunião Anual (RA) da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
“Desafios globais requerem uma resposta global”, frisou o presidente da Asociación Española para el Avance de la Ciencia (AEAC), Federico Mayor Zaragoza, palestrante do evento. “Os desafios que temos hoje são globais e potencialmente irreversíveis. Nós, cientistas, estamos conscientes disso. Por isso temos que no unir, temos que voltar ao multilateralismo democrático baseado no conhecimento.”
A conferência “Multilateralismo baseado no conhecimento para uma nova governança”foi apresentada por Ildeu de Castro Moreira, então presidente da SBPC, e contou com a participação de Ennio Candotti, diretor do Musa e presidente de honra da SBPC, Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC (que tomou posse na sexta-feira) e professor da USP, e Ana Tereza Ribeiro de Vasconcelos, pesquisadora do Laboratório de Bioinformática e da Unidade de Genômica Computacional DFA no Laboratório Nacional de Computação Científica/MCTI e diretora da SBPC, como comentaristas.
Problemas atuais
De acordo com Zaragoza, os problemas atuais vividos pela sociedade mundial deixam claro que precisamos urgentemente nos voltar para o multilateralismo – e um multilateralismo fortemente baseado no conhecimento científico. “É a solução. Todos nós precisamos contribuir com nosso ponto de vista, nosso conhecimento”, afirmou Zaragoza.
No entanto, para Vasconcelos, a maioria das nações segue o caminho contrário durante a pandemia do covid-19, com muitos países se isolando a aumentando a grande lacuna já existente entre desenvolvidos e não desenvolvidos. “Essa ação global deveria ter sido tomada num momento tão crítico, mas isso não foi feito. Hoje, países como a África do Sul têm aproximadamente 3% da sua população vacinada, enquanto no outro extremo os Estados Unidos e a Alemanha estão com mais de 48%. No Brasil, temos cerca de 17% de vacinados. É uma desigualdade social imensa”, aponta.
“A covid acirrou os conflitos no mundo”, concorda Candotti. Para o pesquisador, não apenas a pesquisa científica, mas a sua divulgação é extremamente importante. “O compartilhamento de informações científicas é um dever ético. O acesso cientifico poderia ter feito mudanças vitais”, afirma.
Ribeiro ressaltou a importância do conhecimento na solução dos problemas atuais – desde a pandemia de covid-19 até as mudanças climáticas, passando pelo combate à pobreza extrema. “Se vamos pensar em formas de governança para o futuro, elas têm que estar muito baseada na ciência. Tem de se buscar soluções fundamentadas no conhecimento.”
Colaboração científica
Outro ponto de discussão da conferência foi a colaboração entre as sociedades para o progresso da ciência. Para Zaragoza, é crucial que os cientistas se unam e compartilhem conhecimentos. “Os cientistas não podem mais ignorar a situação mundial atual, não podem mais calar sua voz. Temos que unir nossos conhecimentos.”
Vasconcelos concorda: “As sociedades científicas do mundo inteiro devem se unir para tentar criar ações globalizadas, para que os 195 países do mundo tenham acesso ao que a ciência produz. Temos que transformar esse unilateralismo em multilateralismo para que a sociedade possa ter uma vida mais digna e mais humana”, enfatiza.
Para Candotti, é fundamental buscar a transparência e o acesso do domínio público à informação científica. O pesquisador defende que a ciência é um bem comum, e que o acesso e a troca de informações científicas são cruciais para o desenvolvimento do conhecimento científico. “Não podemos aceitar que a ciência fique limitada aos seus ‘proprietários’”.
“Queremos uma ciência que seja compartilhada e que seus conhecimentos sejam abertos”, reforçou Moreira. “Um dos objetivos fundamentais da ciência é acabar com a miséria humana”, concluiu.
Ribeiro recordou que a bomba atômica foi a maior realização científica no século passado e por muitos anos a pesquisa de ponta foi associada à atividade militar. Hoje, a ênfase da ciência tem se concentrado estado na saúde e no meio ambiente. “Isso é muito significativo, pois indica que a ciência passou da guerra para a paz. E isso está no DNA da SBPC. Está muito claro em suas tomadas de decisão esse vínculo com a paz, com a ética, com a melhoria das condições de vida. Devemos atuar internacionalmente para aumentar o compromisso da ciência com a paz e para melhorar as condições da espécie humana e do planeta.”
Depois de tantos meses de isolamento devido a uma pandemia que parece não ter fim, essa união nunca foi tão necessária e desejada. “Todos os seres humanos iguais em dignidade devem se unir em um multilateralismo democrático eficiente para dizer que nesses momentos não será através da força, mas da palavra, da mediação, da diplomacia, através de um sistema multilateral, que os grandes desafios criados pela humanidade serão resolvidos”, finaliza Zaragoza.
Christiane Bueno – Jornal da Ciência