A revista Nature publicou nesta quinta-feira uma reportagem sobre o caso envolvendo o professor emérito da Unifesp, Elisaldo Carlini, chamado para depor na polícia, no dia 21 de fevereiro, para prestar depoimento sob a alegação de fazer apologia ao uso de drogas. A reportagem, assinada pelo repórter brasileiro, Claudio Ângelo, destaca a imensa adesão ao abaixo-assinado criado pela SBPC e a preocupação da comunidade científica brasileira com potenciais restrições à liberdade acadêmica. O renomado periódico britânico ressalta ainda a brilhante carreira de Carlini, considerado um pioneiro no mundo inteiro nas pesquisas relacionadas à maconha.
Confira abaixo o texto traduzido:
Uma investigação policial envolvendo o pesquisador de maconha mais proeminente do Brasil acendeu uma onda de protestos entre cientistas. Eles dizem que a ação das autoridades do estado de São Paulo ameaça as liberdades de pesquisa em um momento em que a ciência no país enfrenta sérios problemas devido a cortes orçamentários draconianos.
A polícia questionou Elisaldo Carlini, professor emérito de psicofarmacologia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em 21 de fevereiro, por suspeita de incitação ao crime de apologia às drogas, de acordo com as autoridades. Eles ainda estão investigando o caso e Carlini não foi incriminado por nada.
De acordo com os documentos de Rosemary Porcelli da Silva, promotora pública do estado de São Paulo que pediu a abertura do inquérito contra Carlini, ela viu “em teoria, fortes indícios de apologia” em um simpósio de maconha que ele organizou em maio do ano passado. Um dos palestrantes convidados foi o líder da igreja Rastáfari no Brasil, que ainda está preso sob acusações de tráfico de drogas e não participou do simpósio. O uso, a produção e a venda de maconha são ilegais no Brasil. Silva recusou-se a comentar o inquérito.
Um pioneiro
Carlini, de 87 anos, é um dos pioneiros em pesquisas sobre o uso medicinal da maconha. Ele investiga a droga desde a década de 1950 e publicou vários artigos sobre as propriedades anticonvulsivas dos canabinóides. “Carlini é um cientista excepcional”, diz Raphael Mechoulam, pesquisador da Universidade Hebraica de Jerusalém em Israel, cujo laboratório isolou o composto alucinógeno da marijuana, THC, em 1964.
“Há quase 40 anos, seu grupo e o meu grupo fizeram o primeiro experimento clínico com cannabidiol, um importante composto da cannabis, em pacientes epilépticos”, diz Mechoulam. O tratamento que resultou desse trabalho é usado por pessoas com epilepsia hoje.
“Em mais de 60 anos de carreira acadêmica, nunca fui questionado por agentes da lei – até o mês passado”, diz Carlini. Ele conta que a reunião do ano passado foi de natureza científica e não teve nada a ver com incitar as pessoas a usarem drogas. “É uma situação Kafkiana. Eu me pergunto o que eles pensam que um velho pode fazer com maconha.”
No dia 1º de março, pesquisadores, estudantes e funcionários da Unifesp se reuniram no campus para expressar seu apoio a Carlini e protestar contra o que eles perceberam ser um ataque à universidade. A partir de 2 de março, mais de 50 sociedades científicas assinaram uma manifestação de apoio ao cientista. Outra petição em defesa de Carlini, organizada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e dirigida às autoridades do estado de São Paulo, já recebeu mais de 30 mil assinaturas. Entre os apoiadores está o ex-presidente brasileiro, Fernando Henrique Cardoso, que chamou o inquérito contra Carlini “uma coerção inaceitável”.
Liberdade acadêmica
O presidente da SBPC, Ildeu Moreira, diz que o episódio é um passo para trás para a liberdade acadêmica no Brasil, em uma época em que a ciência brasileira enfrenta um decline drástico de financiamento.
Embora não seja ilegal estudar cannabis no Brasil, a legislação atual torna isso difícil. As instituições de pesquisa não podem cultivar maconha, e os cientistas devem solicitar uma autorização especial do governo para qualquer experimento com a droga ou seus componentes, o que pode atrasar seus trabalhos. A agência brasileira de regulamentação de alimentos e medicamentos, Anvisa, está examinando se deve autorizar o cultivo de maconha para fins de pesquisa.
Os cientistas dizem que esperam que o caso Carlini evidencie a dificuldade que os pesquisadores do Brasil enfrentam ao estudar os usos medicinais da cannabis. Renato Filev, neurocientista da Unifesp, está tentando estudar se a cannabis pode ajudar as pessoas com alcoolismo e seus experimentos com animais demonstraram resultados encorajadores, diz ele. Mas os ensaios clínicos foram adiados devido às dificuldades em obter uma autorização para trazer a droga da Holanda. Universidades e comitês de ética têm medo da possibilidade de controvérsias ou de uma investigação policial, diz ele.
“Eu lutei por décadas para mostrar que a maconha é uma planta séria”, diz Carlini. “Dezenas de países já regulamentaram a maconha medicinal. A legislação atual é uma vergonha para a ciência brasileira e para o Brasil.”
Nature – “Police probe of Brazilian marijuana researcher sparks protests” – tradução: Jornal da Ciência