O Assassino do Estado Dourado, como ficou conhecido, fez dezenas de vítimas na Califórnia, Estados Unidos, entre os anos 1970 e 1980. Os rastros de DNA deixados por ele, no entanto, foram inúteis por décadas, já que não constavam nos bancos de dados oficiais do país. Em 2018, ele foi finalmente identificado, de uma forma nada convencional. A polícia norte-americana inseriu seus dados genéticos em um site de ancestralidade — desses que determinam de quais regiões do mundo vieram os antepassados de uma pessoa — e encontrou, entre os usuários, um parente dele. Reduzindo o número de suspeitos a uma única família, foi fácil chegar ao assassino.
A chamada “genética recreativa”, como o site de ancestralidade citado, já é bastante comum, afirma Ursula da Silveira Matte, docente do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). De acordo com a pesquisadora, mais de 26 milhões de pessoas no mundo já fizeram testes de mapeamento genético por meio de empresas que vendem o serviço diretamente ao consumidor. “As companhias estão nos Estados Unidos, mas os clientes estão no mundo inteiro”, conta em conferência realizada na 71a Reunião Anual da SBPC, em Campo Grande.
Uma das maiores empresas do ramo, a 23andme, cobra U$ 99 pelo mapeamento genético de qualquer pessoa. Basta fazer a compra on-line, receber um kit de coleta de saliva e mandar o material de volta que, em poucos dias, o seu código genético chega por e-mail. Depois, a informação pode ser usada em aplicativos ou sites que fazem os mais variados testes, de ancestralidade à compatibilidade amorosa — para encontrar parceiros compatíveis — e de aconselhamento para dietas e treinamentos físicos personalizados, baseados na sequência de DNA.
Ética, aplicações e limites
Essa nova prática, já amplamente disseminada, traz consigo uma série de questões éticas, uma delas o tipo de uso dessas informações que é feito pela empresas. “Como eu garanto que a minha informação genética está sendo protegida?”, questiona Matte. Para a pesquisadora, estamos permitindo que as empresas criem bancos de dados genéticos privados e ganhem muito dinheiro com isso, até mesmo aquelas que não cobram dos consumidores pelo serviço (vários desses aplicativos são gratuitos). “O valor dessas companhias está nas informações que elas coletam das pessoas”, alerta.
Outra questão é o que é prometido aos usuários. Matte cita um exemplo de empresa que oferece testes de “talentos inatos” para crianças — por U$ 120 a pessoa consegue saber, por exemplo, o potencial atlético e de performance intelectual do seu filho. O problema, de acordo com a pesquisadora, é que muitas dessas informações — como a inteligência ou propensão à depressão, por exemplo —, não podem ser definidas apenas pelo mapeamento do código genético de um indivíduo. A ideia que se vende, no entanto, é que se pode moldar o futuro, “que eu posso fazer investimentos melhores se eu souber a aptidão da criança”, diz Matte.
A comunidade internacional já discute a necessidade de aconselhamento genético no caso de testes que oferecem informações genéticas sobre questões de saúde, como as chances de uma pessoa ter problemas cardíacos ou câncer, por exemplo. O FDA, agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, chegou a barrar esse tipo de teste, mas recentemente liberou alguns deles novamente.
O que preocupa, de acordo com a pesquisadora da UFRGS, é que “ninguém sabe se esses testes estão clinicamente corretos, ninguém fiscaliza”. Ou seja, não se sabe se os testes avaliam corretamente as variantes que prometem determinar e se os resultados são relevantes clinicamente. Como não são testes médicos propriamente, as empresas não estão sob regulamentação das autoridades que fiscalizam produtos e procedimentos de saúde.
Aqueles que são favoráveis ao uso dos testes genéticos recreativos geralmente argumentam, de acordo com Matte, que os impactos observados até agora não são negativos ou nocivos às pessoas, podendo inclusive levá-las a mudar alguns hábitos para ter uma vida mais saudável. Ainda, essa prática poderia aumentar o conhecimento da população sobre genética e aproximá-la da ciência.
Pegadas genéticas
O mapeamento genético já foi até objeto de um projeto artístico intitulado Stanger Visions, realizado nos Estados Unidos pela artista e bio-hacker Heather Dewey-Hagborg, em que ela criou uma série de retratos a partir de DNA coletado em itens descartados pelas pessoas nas ruas, como bitucas de cigarros e chicletes, enquanto morava no Brooklyn, Nova York.
Em artigo publicado por um consórcio de pesquisadores, entre os quais vários da UFRGS, eles encontraram um conjunto de variantes genéticas que são associadas à presença de determinadas características faciais. O contrário, portanto, agora também pode ser feito. “Conhecendo o polimorfismo, eu posso imaginar, por exemplo, como é o nariz de uma pessoa”, diz Matte. E já existe uma empresa que faz isso, ou seja, que constrói o perfil de uma pessoa a partir de seus dados genéticos — o que poder ser feito a partir de qualquer amostra de DNA.
“Como lidar com “pegadas” genéticas que deixamos a todo momento?”, questiona Matte. Para a pesquisadora, em tempos de informação genética amplamente acessível, existem muitas questões relativas a confidencialidade e privacidade que ainda não estão bem definidas. “Entramos numa era de responsabilidade genética”, define a pesquisadora, para quem a melhor forma de combater o mau uso dos dados genéticos pessoais é informar os riscos e benefícios à população.
Ana Paula Morales, especial para o Jornal da Ciência